Morrer é dormir sorrindo

Sempre estive pelas alcovas hospitalares. Perambulei em momentos distintos, como um personagem atônito, sorvendo cambaleado o sofrimento alheio. Estava lá com apenas um propósito: Cessar a dor.

Minha angústia maior era o insucesso de minhas tentativas. Invariavelmente as dores cessavam, as queixas silenciavam, as almas se reacendiam. Por outras vezes tudo era em vão. Todo o trabalho, as atenções, os lampejos, tudo, as estratégias se iam no desfalecimento do ente cuidado.

O paciente é um ser passivo, humano, carente. Clama por uma palavra, pelo toque, por um olhar amigo e confortador. Todo paciente sente dor. Não a dor física, mas a dor humana, de espírito, dor da alma. Uma sensação dolorosa que não cessa com analgesia e não conforta com medicamentos. Uma dor profunda. Um mesclado de insegurança e incertezas, de preocupações e medo.

Já estive por corredores escuros a escutar gritos de desespero em madrugadas frias. Famílias se desfazerem em rols de hospitais com a notícia inesperada. Filhos e mães chorarem.

Faz-me lembrar quando ainda era estudante e estagiava no hospital São Vicente de Paulo. As enfermarias mantinham pacientes sôfregos, com variadas patologias e enfermidades.

Me chamou atenção um sujeito grande, pele escura, suado e com um sorriso no rosto. Uma máscara conectada a um torpedo de oxigênio lhe escondia o semblante. Suas dores eram generalizadas, mais focadas na região abdominal. Sua pele era pegajosa, seus olhos eram assustados. Uma febre lhe acompanhava os vinte dias de sua internação, companheira, cruel. Tinha uma diarréia persistente, líquida, que alternava e teimava em sair ora pelo anus, ora por uma intervenção cirúrgica de colostomia feita por médicos assistentes.

Seu quadro era de septicemia, causada por uma apendicite supurada e tardia.

Passei a acompanhar este sujeito, empático, solidário. Comecei a vivenciar sua história, entender, confortar. Tinha pouco mais de trinta anos, todos eles sofridos. Era um pai de família responsável, como ele mesmo se julgava. Tinha uma filha de cinco anos, linda, cabelos ondulados e feliz. Sempre ao se referir a ela seus olhos lacrimejavam de emoção e amor. Maria Eduarda era seu único motivo de choro compulsivo. Ela sempre estava lá, ao lado do leito, tocando o pai, sem entender. Trabalhava de moto-taxi, honestamente, duro, todos os dias. Ostentava uma preocupação com todos, fazia questão de me tocar, olhava em meus olhos, perguntava sempre como eu estava.

Certa noite ao chegar em seu leito evidenciei uma piora clínica, sua respiração era difícil, seus olhos não abriam, familiares choravam. A diarréia e a febre estavam ainda mais fortes e persistentes. Jorge ainda sorria. Abriu os olhos, toquei-lhe a testa e perguntei:

- Por que ainda sorri?

Em tom baixo, murmurado, respondeu:

- Porque tenho uma filha linda doutor, e gosto de viver.

Fechou os olhos e morreu, sorrindo.