Canudos e o Rio de Janeiro
A formula para criar um inferno começa na ausência do capital e trabalho para nutrir tantas vidas alijadas ao direito à existência digna. Elas então se amontoam perto do sonho e longe da realidade. Logo começa a necessidade urgir determinações e os delitos menores, ainda sem sangue, são severamente punidos ainda que tenham origem na fome. Uma fome de Sisifo. São reprimidos duramente e amontoados como animais em horrendas circunstâncias. Aos poucos os que fogem começam a receber uma nova proposta. Para eles a ingenuidade moral de que droga é crime quando foram arrancados da vida pela humilhação parece motivo de riso. Dá dinheiro, usa quem quer, a maior parte da clientela vem de gente bem vestida que sabe o que faz. Misturam-se as luzes, alegria hedonista, enfim. Parece improvável que se tenha uma consciência moral quando a miséria é a maior responsável pela tomada de iniciativa. A droga é linimento financeiro e subjetivo nesse ambiente de horror. O fator preponderante. Mas quando o lucro desta dificuldade lhes permite apenas colidir com a barreira moral, torna-se irreprimível. Tira-se o único prazer, a única fonte de abastecimento econômico, de quem nunca possui alguma chance, ela então se rebela.
A droga passou então a fazer parte da economia de quem vive na miséria. Mas como dizia o inesquecível tribuno desaparecido sem pistas, Ulisses Guimarães "o pobre sofre muito com a marginalidade". Mesmo os que fogem do conflito no morro, descendo deseperados, podem ser baleados com a simples definição de “traficantes descendo o morro”, ou ainda, "bandidos". A generalização faz parte da guerra. O direito individual é miragem no que tange o seu universo e o universo do consumo. A droga é crença de multiplicados Conselheiros. A favela é o reduto.
A teoria racional da descriminalização das drogas teria diminuído o impacto? Se a luta fosse contra o armamento? Se o pacto fosse de entrega das armas em torno de valores significativos, e a droga gratuitamente distribuída em Postos de Atendimento Sanitário Especial para Dependentes Químicos? Haveria ainda comércio paralelo? Se as favelas fossem urbanizadas com especial atenção para saneamento básico, emprego e renda? Se as cadeias fossem humanizadas? Os delitos divididos pelo grau de periculosidade? Haveria ainda assim tamanha crueldade retribuída?
Confesso que diante do espetáculo monstruoso televisivo há poucas reflexões para soluções e uma espécie de aparelhamento no jogo das forças para embates massivos. Tendo a moral de prestígio como pano de fundo das ações contra a miséria em busca de renda. A dificuldade de racionalização das ações diante do caos com os fatores apresentados percorrerão décadas insolucionáveis. A tríade drogadicção, crime e economia jamais haverá de se desfazer pelo critério moral da mídia. É como se Catilina fosse eleito e probibisse o vinho em toda a Roma do seu tempo.
Fala-se tanto em convivência com as diferenças... Está por trás de toda dor o messianismo do prazer dentro da cidade maravilhosa que jamais viverá sem ofertar todas as espécies de sonhos ainda que custe o fracasso de origem. É fácil para demagogos exclamarem no terreno político: vamos acabar com as drogas! Deveriam dizer: vamos acabar com a miséria! Vamos lutar contra a dor humana, sem contrapartidade de sangue.
Só a urbanização racional poderá vencer tamanhas atrocidades com a luta sanitária em nome da saúde das populações oprimidas.