BÉJART E A INFÂNCIA
“As pessoas costumam dizer que à medida que se envelhece, retorna-se para a infância. Eu me recordo melhor da minha juventude do que de certos eventos recentes. O mesmo acontece com os balés.”
Maurice Béjart
O encantamento do primeiro balé surge tão logo fecho os olhos e sonho com a beleza dos movimentos em cores e sons. A pesada cortina bordô se abre em uma nova realidade... A menina de cachos dourados, com vestido de veludo vermelho e laçarote, sobe a escadaria apressada. Atenta aos sapatos de verniz, tropeça nos degraus e encontra o amparo nos braços do pai. Seus grandes olhos são espelhos para as percepções mágicas que reflete... O grande portal do Teatro Municipal do Rio de Janeiro é o limiar para a orquestração das suas primeiras impressões.
Primeira noite de gala, primeiro balé... Tudo é grandioso: escadas de mármores com sinuosos degraus, platéia, balcões, camarotes, cortinas cerradas, primeiros sons da orquestra, vestidos brilhosos, grandes saltos coloridos, ternos escuros, cheiro de perfume, anis... Os adultos também conhecem o caminho dos contos de fadas. A menina folheia o programa na platéia. Os retratos são belíssimos e se aproximam dos sonhos.
Companhia de balé de Maurice Béjart. O Bolero! A música nasce lentamente e cresce com a essência resguardada. A natureza do homem e a sociedade a desenhar as circunstâncias nos novos instrumentos da orquestra. Uma melodia que insiste em sobreviver às intempéries das descobertas. A vida de cada um! A ousada coreografia alimenta os instintos do intérprete e passa a simbolizar todas as emoções. Pungente, vivo, erótico, fugaz... Pela primeira vez o balé, pela primeira vez o bolero de Ravel... Infinitas cortinas entreabertas para as futuras lembranças: a infância representada em sua plenitude, orquestrada por um vir a ser inesperado. A menina não cabe em si de alegria, desvenda os sonhos com sensações que não pode realizar. Quer rodopiar junto ao bailarino... Será dançarina quando crescer!
Qual o personagem? O que representa o homem vestido de malha preta, com o dorso nu e os cabelos encaracolados? E a melodia inesquecível? Indagações que serão interpretadas em cada novo olhar, em cada silêncio...
Béjart veio pela primeira vez ao Brasil em 1963. Apesar do êxito da apresentação de sua companhia e a afeição que sentiu pelo lugar, só retornou ao país em 1979, com o processo de abertura política, pois não concordava com o regime autoritário imposto pela ditadura militar.
Na entrevista concedida por Maurice Béjart para o jornal Le Monde em 27/11/2004, o coreógrafo comemora os cinqüenta anos de carreira, falando dos projetos, da paixão pela escola de dança, da importância dos seres humanos que enfrentam o combate da vida, e infelizmente sobre o pessimismo que sente em relação à situação internacional. A realidade de guerras e intolerâncias não pode ser ignorada nem mesmo pelo criador das coreografias mais ousadas e realizador das primeiras fantasias. A arte é um retrato da humanidade e certamente desperta a platéia para a contemporaneidade dos sentimentos que envolvem as sociedades.
Lembro-me de outras apresentações de balés, inclusive da apresentação de “Madre Tereza e as crianças do mundo”, também da Companhia de Béjart, apresentado no Teatro Guaíra em 2003. Contudo, as reminiscências infantis são mais fortes e preenchem o pensamento com os movimentos apaixonados de Jorge Donn, o bailarino de cabelos cacheados incendiado por uma intensa iluminação vermelha e embriagado com a beleza da composição de Ravel no tablado do Teatro Municipal em 1979.
Coração disparado. Tento resgatar a imagem no presente. No encerramento do filme “Retratos da vida”, de Claude Lelouch, novamente sou levada pelas emoções do primeiro instante. A performance de Jorge Donn é o final apoteótico do filme quando preenche o mundo com a sensualidade da coreografia de Maurice Béjart e a intensidade do Bolero composto por Maurice Ravel em 1928.