Papai Noel

As botas são emprestadas e apertam bastante meus pés. A roupa, já bastante usada em anos anteriores, acusa o estrago que o tempo causou, deixando aparente a barriga adquirida pelas cervejinhas dos finais de semana. Mesmo assim, é pequena se comparada à original que pretendia imitar. A barba postiça, constrangedor comentar, pois nem em sonho enganaria alguém, a menos que fosse dito ser algodão-doce, pois era o que parecia afinal. Nem arrisco um HO-HO-HO, pois nem para isso tenho muito jeito.

Os pés sofridos pelas botas de número menor descem do carro e encontram de imediato uma poça d’água, pois havia chovido bastante... é, o que já estava ruim parece que iria piorar, afinal permanecer horas com os pés molhados dentro de botas apertadas não é exatamente a melhor coisa do mundo.

Assim descrevo o que não passa de uma caricatura do clássico ser que tento parecer. Eu diria que bastante ridículo, ainda mais tendo um velho Fusca no lugar do conhecido trenó com suas renas. Pelo menos o Fusca é vermelho e nisso combina com o contexto.

Mas ele não liga para nada disso. Chega correndo com um sorriso largo que mostra os dentes perfeitos, talvez resultado da alimentação básica que exclui guloseimas tão caras quanto nocivas. A mesma poça em que pisei com minhas botas apertadas agora é pisada por pés descalços e, posso afirmar, acostumados a isso. A temperatura não é das mais agradáveis, mas ele não veste muita roupa, na verdade apenas uma bermuda bastante surrada. O brilho que vejo em seus olhos e o sorriso que comentei anteriormente me fazem pensar por um instante que realmente acredita que sou quem tento parecer. Que besteira, ninguém mais hoje em dia tem tamanha ingenuidade...mas no mesmo instante recordo que demorei um tempão para ter as revelações que tanto me decepcionaram e acabaram com minhas fantasias, fantasias de que haveria um mundo mágico no qual um velhinho passaria o ano inteiro construindo brinquedos e em apenas uma noite distribuiria a todas as crianças do mundo, ou pelo menos àquelas que teriam se comportado durante o ano. Acho que eu tinha mais idade que esse menino quando ainda acreditava nisso.

Volto a prestar atenção em sua reação, quando segura com mãos pequenas o embrulho feito às pressas (e mal feito, aliás, pela funcionária mal humorada que reclamava já ter passado da hora de fechar). Mãos pequenas, mas muito ágeis para despir com rapidez outra imitação, talvez pior que a minha, já que a bola oficial da Copa do Mundo, de renomada marca, era cara demais. Essa, de longe, até se parece, mas a má qualidade da impressão da logomarca entrega ser falsa. De qualquer maneira, ele não parece se importar nem um pouco. Talvez pense que seja oficial, talvez pense que eu seja o velhinho oficial, realmente não sei, e acho que nunca saberei, porque só há tempo de receber um caloroso abraço daquele corpo miúdo antes que ele vire as costas e saia correndo com a falsa Jabulani embaixo do braço magrinho, provavelmente louco para mostrar para a mãe, que olha de longe, parada na porta do pequeno barraco, ostentando um sorriso largo muito parecido com o do filho. Talvez em seus sonhos, naquele momento, lindos gols em um Maracanã lotado, com jogadas ensaiadas em um campo de chão batido, utilizando a falsa Jabulani.

Meus olhos já não o acompanham mais, afinal agora volto a atenção a tantas outras mãozinhas que buscam também uma bola, uma boneca, um carrinho, ou seria um carinho? Quanto significado na omissão de uma simples letra...

Trabalho aqui apenas uma vez por ano. Meu salário é zero. Nem sabem quem sou ao certo, já que minha barba fajuta esconde parte do meu rosto. Não terei promoções (quem sabe um traje mais confortável?), uma aposentadoria, nem o reconhecimento de ninguém, mas posso assegurar, nesse exato momento em que me lembro daquele sorriso largo, que tenho o melhor trabalho do mundo

Sérgio Kuns
Enviado por Sérgio Kuns em 26/11/2010
Reeditado em 11/12/2016
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