desassossego?

I

Que a carruagem dos sonhos, modesta como as linhas da vida em palma de mãos já esmorecidas pela decrepidez do tempo, tragam-me de volta a jactância da mocidade que há muito desvaneceu-se. Quiçá a glória herdada de deuses já esquecidos, que assombra a plenitude da escuridão que me carrega, possa acalentar corpo tão extenuado. Desassossego? Apenas creio na existência sôfrega de uma alma mutilada pela extensão do tempo. Reminiscências de um passado malogrado pela escassez de paixões que nunca se concretizaram, que nunca hão de se concretizar. Houve um tempo em que tudo parecia ser mais simples e eu, só, teimava em não me exasperar por cousas que outrora sonhava em não sonhar. Não que os sonhos cessaram de existir. Não, não é isso! Agora eles se tornaram apenas partes ínfimas de um todo muito menor. Eu mesmo. Talvez o meu destino seja para sempre ser quem eu gostaria de pensar que sou. Gozar de uma imaginação obscurecida pela imagem de algo que tange a secura; bem verdade que não sei ainda se é isso, de meu coração. Enquanto escrevo, tenho a percepção de que tudo ao meu redor torna-se mais leve, não tenho que pensar. Fruo daquela sensação angustiante que tortura aqueles que não têm nada a dizer, e se têm, não dizem. Não compartilho com as multidões a vil necessidade de exteriorizar a minha intimidade já obsoleta, embora o faça simplesmente a fim de não contrariar as predileções de meu espírito. Debalde luto contra tudo aquilo que é natural em minha inconsciência, e meu juízo, afetado pela imoralidade que transpõe as circunstâncias das coisas mais efêmeras, deixa-se levar pelo caminho que trilha a minha dor. É terrivelmente lamentável se o caro leitor não consegue abstrair dessas linhas tudo que me apetece dizer. Não é esse o meu intento mesmo. Apenas trato indiferentemente de algo sem nexo, e narro aqui a inconsistência e a inconstância do que vem sendo a minha história sem vida.

II

Não durmo e nem posso dormir. Esse morcego que invade o meu quarto e reflete tão poeticamente a natureza da minha consciência é a síntese de toda a tirania e amargura que tão bruscamente perfura a minha frágil armadura. Ah esse morcego! Se ao menos eu pudesse tocá-lo. Não importa. Por mais que eu me esforce esse olho permanece cego às minhas tentativas frustradas de alvejá-lo. Meu medo se tornou agora disforme. O morcego se confunde com a escuridão que abarca todos os meus pesadelos noturnos. Sonho de uma vida mais serene não tenho mais; e se algo ainda me resta é a certeza ignóbil da frugalidade de meus mais tenros desejos.

III

Como conciliar a epistemologia de todas as ciências com a desventura de nada poder abstrair das coisas quotidianas? Desvelar o que antes permaneceu escondido por séculos se não consigo nem mesmo notar o que de mais belo me revela os campos desnutridos de fome, de amor e de reclusão? O mais esdrúxulo é saber que os dias não me têm mais nada a dizer. Vivo sem saber por que estou de olhos abertos fitando campos longínquos que se perdem na verdura amarelada de um inverno que insiste em não me deixar.

IV

Se escrevo, não o faço por puro capricho, porém sim, apenas por que obedeço a uma obsessão compulsiva de meus nervos já há muito débeis. A cooperação mútua entre mente e corpo, essa dicotomia cartesiana desgraçada pela adesão do tempo. Hoje, mais do que nunca, me senti menor; menor ainda do que essa estrada que liga a minha concepção ao meu real destino.

V

A noite que cai, traz com ela subterfúgios estáticos como aquela lua espremida por entre nuvens que refletem a escuridão de um céu vazio e pobre como o meu nome. Coitado daquele que tem um nome, pois é esse mesmo nome que será postumamente agourado pela inexistência sombria que eclode das mínimas concepções que trazemos acerca da essência das coisas que nos envolvem. O que é um nome senão uma sutileza inexata que imprime nos seres a catástrofe de uma existência irrisória, imoral e irreal? Penso, enquanto olho o mundo por detrás dessas janelas de madeira pálida e de vidros foscos, que minha prosápia e opulência são frutos irreverentes de uma civilização ilusória, que os jardins que habitam esta cidade não são mais que prisões onde a natureza deixa de criar réplicas de ousadias divinas e que o meu amor por ti me liberta, e, ao mesmo tempo, me enche de desesperança desesperadora. É jocoso o modo arrebatador como as circunstâncias conspiram para que a monotonia da minha continuidade ociosa encontre do outro lado da rua, à beira daquele rio pardo e fétido, uma esperança ainda crua de virtudes que não há em mim. Sou eu, mas não é nada e esse nada se combina à miscelânea de cores que atarantam a corpulência do crepúsculo de todos os ídolos que não conseguem a proeza de abrandar a minha sólida solidão.

VI

Alguns dias infelizmente se passaram antes que eu pudesse de alguma forma voltar tentar, ao menos, virgular algumas linhas deste livro que tão pesadamente tem me consumido de modo tão voraz todas as minhas idéias iniciais, que caíram no limbo do traiçoeiro esquecimento. Não me aprazem dias como esse, que acabo de ter, dias em que meu poder de criação tem que suplicar para deixar a jaula da obliteração.

VII

Carrego comigo um desejo mórbido de esquecer tudo aquilo que ficou ausente em meu passado. Todas as singularidades de um ser extraviado de suas mais profundas réplicas sensoriais. É isso mesmo! Afetado por toda a descontinuidade do tempo não vivido por ocasião de estar, a todo instante, preso dentro dele mesmo. Nada me aflige mais, nada me atormenta mais o espírito do que esta não participação efetiva na pintura de quadros que inevitavelmente são retratos da minha não exposição à mundanidade das coisas mais simplórias. Atos não consolidados pela aparência ignóbil das sombras tenebrosas que acolhem a carência de minha atormentada alma. Não vivo e com isso quero salientar que não o faço no mais simples de todos os termos. A minha vida é pobre, execrada e desprovida de qualquer sentido lógico. A vida em si mesma é uma ignomínia.

Fc
Enviado por Fc em 25/11/2010
Código do texto: T2635397
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