O ENCONTRO

por Beto Pacheco

E quando a saudade aperta, o que fazer? Falo de diferentes saudades, mas principalmente da saudade causada pela distância. Da distância física, do tempo que passa, das vivencias diferentes, dos contextos que se partem, dos contrastes de percepção e participação de mundo que se distinguem, entre inúmeras outras.

E quando se sente saudade de um amor antigo e platônico? Alguém cujo tempo todo esteve longe – apesar de parecer tão perto. Alguém que você conheceu por meandros inesperados. Pelo vento, pelas ondas, pelos timbres, pelas histórias que se contam, pelas imagens, por transmissão de pensamento e sentimentos, pelo que criou, pelo que inventou e pelo que reinventou.

E quando você descobre que tudo o que você faz tem, de certa maneira, influência desse amor antigo, distante e utópico? Algo que não aconteceu por escolha sua. Algo que aconteceu pelo toque da beleza, do talento, da ternura, da ímpar (quase transcendental, pois na falta de explicação racional temos de nos render a outros caminhos) genialidade e da disposição de provar o quanto o ser é capaz de fazer.

E quando se percebe que, por mais que seja utópico, este amor lhe pertence? Mesmo que partilhado com milhões, lhe pertence. Sem ciúme; sem posse; sem divisão, mas com partilha; com absurda complexidade, mas simples entendimento.

E quando se compreende que os acordes todos se montam com as mesmas notas, mas que, porém, se fazem soar de maneira diferente por mãos que parecem ungidas? E que talvez você nunca vá conseguir presenciar pessoalmente, apesar de ser o amor que lhe cabe, tal toque e as melodias que por cima dele deslizam.

E quando, na iminência de desistir, você tem a oportunidade de aproximar-se desse amor? Melhor: daquele que fez parte da essência desse amor.

Esse amor é a arte.

Esse amor é a música.

Obra de uma vida dedicada a pedir paz, igualdade e compaixão. Obra de uma vida a divulgar a felicidade e a diversão. Obra de uma vida a gravar as desilusões e a tristeza de certas situações. Obra de uma vida a criticar, seja poética ou diretamente, a sociedade, a política e o Homem. Obra de uma vida a ter e a perder, como tantos e todos os outros.

Se precisamos de faróis a nos guiar, em qualquer área, ele, Paul McCartney, no que diz respeito à música, e às idéias que dela derivam, é um deles. Ele fez parte daquela que foi “A” banda. Compôs muitas daquelas que são consideradas “As” músicas. Está na História da Arte. Está na História do Mundo contemporâneo. Sua obra, suas idéias, suas melodias, aqueceram e aquecem corações e mentes – seja no inverno siberiano ou nas areias havaianas.

Um mito que te chama de amigo e que sorri, ingenuamente, de balões jogados ao ar. Uma lenda que, se somados todos os artistas que já assisti em toda a minha vida (e lá se vão 32 anos completados nesta segunda-feira), falou mais comigo em uma noite – mesmo não entendendo a minha língua, mas se esforçando para falá-la – do que todos os demais ao longo do tempo.

Alguém que jamais imaginei ver de perto. Alguém cuja foto do amigo e parceiro, John, estampava o meu quarto quando eu tinha apenas 3 anos de idade. Época em que eu sequer imaginava como se montava um fá sustenido e a dor que a pestana resultante causava no gordinho da palma da mão.

Sendo quem é (e não sabendo quem sou) ele podia muito bem fazer o seu trabalho e ir para casa. Eu ia, da mesma forma, escrever sobre o nosso encontro de maneira exultante. A diferença é que, da forma como foi, ficando três horas seguidas ao meu lado (quem mais faz parecido?), falando a minha língua, carregando a minha bandeira, brincando e se divertindo como se fosse a primeira vez (e era) ele me obrigou, nas últimas 48 horas, a sentar 10 vezes em frente à tela em branco do meu computador. Comecei, portanto, 10 textos diferentes e deletei, em suma, 10 textos (medíocres) diferentes.

Não que este seja menos medíocre. O fato é que desisti de tentar explicar, à altura, o que aconteceu no nosso encontro. Não há palavras... pelo menos não dentre as que formam o meu vocabulário. Resolvi que ia apenas digitar sem parar e pôr logo um fim a essa angústia de derreter e colocar para fora o que se congelou na retina.

Esperei 32 anos para vê-lo. Ouvi-o por 32 anos. Cantei-o por 32 anos. Toquei-o por aproximadamente 11 anos (tempo em que arranho minha viola). Li, vi, escrevi sobre ele e seus amigos. Tentei entendê-los... pois é, estupidez a minha, eu sei. E jurava que passaria por todas as rotações da Terra e translações em torno do Sol sem o encontrar. Mas ele veio.

E lá fui eu a seu encontro. Eu e mais 64 mil apaixonados.

Ele entrou e tocou. E cantou. E conversou. E botou fogo no palco e na platéia. Fez todos pularem, chorarem (muitas e muitas vezes, confesso). Dedicou canções a outros que vieram do mesmo lugar que ele e que foram para onde ele irá – um cantinho para poucos privilegiados, devemos admitir. Fez-me perder a voz, a noção do tempo e do espaço e a vontade de voltar para casa.

Religou lembranças nas cabeças de namorados, casais, senhores, senhoras, jovens, homens, mulheres, crianças, espíritos (sim, pois deviam ter alguns por lá também). Recebeu em troca balões – milhares de balões brancos – de presente. Balões que se espalharam por vontade própria entre o público. Balões que ficaram quietinhos, esperando a sua hora. Balões que foram aos céus juntos, enquanto todos cantavam “All we are saying is give peace a chance” (Tudo o que estamos dizendo é: dê uma chance à paz).

Aquele senhor de quase 70 anos viu um céu artificial, formado pela penumbra noturna encoberta por diamantes representados pelas luzes dos celulares, iluminar-se nas arquibancadas quando cantou Let It Be. E eu vi, às 21h25, apenas cinco minutos antes do espetáculo começar, a Lua aparecer, por de trás da parede de concreto do estádio, toda cheia. Como se estufasse o peito para dar “oi” e para deixar bem claro que não perderia aquilo por nada.

Vi os fogos em Live And Let Die e gritei a plenos pulmões para tentar alcançar seus decibéis. Ouvi-o dizer, pela primeira vez pessoalmente, “Close Your Eyes And I Kiss You”. Voei em Helter Skelter. Comemorei em Back In The U.S.S.R. Saltei em coreografia em Ob-La-Di Ob-La-Da. Ri com Lady Madonna e I’Ve Just Seen A Face. Dancei em Drive My Car e I’ve Got A Feeling. Derramei lágrimas e mais lágrimas em A day In The Life, Something, Blackbird, Hey Jude, Yesterday… e suspirei nos primeiros acordes de Sgt. Pepper’s.

À meia-noite, quando chegou o dia 22 – meu aniversário – ele tocou Get Back. Seria um recado? Para aonde eu deveria voltar, Paul?

O fato é que existem apenas duas coisas que posso dizer que sei fazer na vida – e evidentemente de maneira mediana. Uma é escrever. A outra é tocar... (meus pais devem sentir um desgosto danado, tadinhos). E as duas só existem porque, em algum momento nesta passagem de mundo, meu cérebro aprendeu com a arte dele. Talvez tenha me faltado empenho e talento para ir mais longe, mas disso nem ele, nem seus amigos têm culpa.

Como um ciclo que se fecha, encontrei o platônico amor, que se fará representado na escrita pelo relato e na música em trilhas sonoras de sonhos nostálgicos. Foi rápido como um cometa, mas aproveitei o máximo que pude. Fiquei os dois dias seguintes em estado de euforia. Só falava dele, da música dele, do show, da presença, da importância e do quão inexplicável era. Agora, sinto saudade de novo. Não dei tchau direito. Não disse tudo o que queria para ele. Tento estender os sentimentos nestas palavras, mas não é suficiente. Bate-me uma ligeira sensação de melancolia, pois, apesar de expressar-me com a máxima emoção, entendo racionalmente que não o verei mais. Foi único.

Ao fim do show, já fora do estádio, mando uma mensagem para um amigo que também estava lá: “Anotou a placa?”

E ele responde: “Não. Só vi que não era desse planeta!”

E Paul pegou sua nave e foi embora.

Adeus, amigo. E obrigado!