Caso de nome no livro

À mãe Lúcia, e irmão Rogério

Sei que muitos leitores jamais me perdoarão pelo fato de vender todos os livros que me caem em mãos. Sei que há grandes escrúpulos sobre a venda de alguns. Mas como jogam no lixo sem piedade tanto os livros profanos quanto os sagrados, comercializo para viver, cada exemplar em bom estado. Minhas desculpas são as de quem ainda escutam antigas canções com alma de criança.

Moro perto de um centro de tratamento para doente mentais com o sensível e poético nome de Casa Nova Vida. Ambiente moderno de convívio civilizado. Geograficamente minha vida está sempre próximo do hospital, da polícia, do presídio, do necrotério, e por fim desta casa para tratamento de alienados. Neste ambiente plantei a livraria de livros usados. Ela germinou calmamente sem que muitos dessem por conta até hoje da sua fiel e suplementar maneira de existir.

O fato que vou lhes contar é verídico e me traduz certa emoção, tirante o fato de parecer sem escúpulos a venda de livros religiosos. Para mim todos os livros são sagrados enquanto liberdade de expressão. Assim que numa bela tarde de sol amarelado um cliente inusitado solicitou um exemplar da Bíblia. De fato guardava um modelo em bom estado para quem o desejasse. Respondi que sim e o cliente perguntou:

- Tem o meu nome nele?

- Como se chama o senhor? Julgava que fosse Pedro, João, Mateus..

- Eu me Chamo Enalério.

- Enalério? Peço desculpas. Tem Salomão, Isaias, Mateus, Jesus...

- Não, tem que ter Enalério...

- Ah! Enalério não tem não. Ele virou as costas e foi embora desapontado.

Bastava apenas este fato para que Enalério ficasse incrustrado na minha memória, porém passado alguns dias retornou com a mesma séria indagação. Tínhamos em comum o mesmo sentimento de solução para tal indagação, daí sua persistência. Na mesma inquirição morava o mesmo desejo de consumo. Comecei a ficar encafifado. Ele era da Casa Nova Vida, portanto fazia terapia. Exigia de mim um nome bíblico, inexistente. Intuí de fato sem conhecer todo o livro a inexistência de seu nome incomum: E-na-lério. Peço, pelo amor de Deus, que me corrijam se estou enganado. Na quarta vez que ele perguntou resolvi mudar a tática de recusa. Disse-lhe com ar de sucesso típico dos vendedores: ora, amigo, não tem; mas posso colocar o seu nome com caneta azul na página de rosto do livro.

- Ah! Isso mesmo. Seus olhos brilharam. Assim todos ficarão sabendo que este livro é meu, completou.

Comprou o livro e foi embora feliz, muito feliz. A felicidade dos que são compreendidos, de onde nasce a a saúde muitas vezes proibida que a correria proíbe, que a desatenção deforma. Sem saber ler ou escrever era o único recurso de ter consigo um livro. De lançar mão da sua inteira posse perante os demais. Livro fundamentalmente sagrado. Guardarei para sempre este fato não como feito, mas como abraço de pessoa querida. Tal história compensou naquela semana as constantes dificuldades financeiras do ramo.

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