O QUE FARÁ NOS SEUS ÚLTIMOS SEGUNDOS?

Alguns eventos podem transformar um dia normal naquele ponto especial do tempo em que nosso destino adquire contornos finais: o momento em que pedimos alguém em casamento, somos pedidos, aceitamos ou recusamos; um concurso que fazemos ou não; a festa em que deixamos de comparecer; a mensagem não respondida. Podemos criar uma lista enorme, extensa, infinita e repleta de fatos casuais. O desprezível ato de pagar uma conta em banco, na lotérica ou na internet pode delinear encontros e desencontros.

No entanto, vivemos cada minuto, como se fosse comum, sem importância, queimando sua passagem sem nenhuma consagração especial. Idalina acordou assim e desse modo vivia, semelhante a todos nós. Seus gloriosos 19 anos carregavam frustrações, desencantos e tristezas pesados demais para a idade. Não se esforçara nos estudos, abandonara-os, acreditava perder tempo naquelas cadeiras, lições enfadonhas, inúteis.

Desse modo uma das carreiras que sua qualificação profissional permitiu foi a de faxineira. Felizmente, na metrópole febril, vagas não lhe faltavam. Chegou para trabalhar certificando que cumpriria a rotina pálida de todas as manhãs: limpar, esfregar, varrer, espanar. Trocava os anos por minguados centavos usados na garantia da sobrevivência: colhera com os frutos do seu esforço um emprego mínimo.

Com a morada deserta, iniciou sua atividade. Os banheiros esterilizou, seguiu para a cozinha, a sala e findaria pelos quartos. O dia, no entanto, era especial: ganharia um extra pela limpeza das janelas. Seu coração estava apertado, como sempre, e, por mais de uma vez, pensara em dar um termo final àquela existência sem sentido: não queria filhos, marido, preocupações. Se o fim que a todos espera é o mesmo, por que não abrevia-lo? Faltava-lhe de todo a iniciativa. A única decisão real, forte, que tomara foi a de abandonar as mesas escolares e relegar os livros. O resto foi fruto, colheita, efeito compulsório de sua escolha.

Subiu no parapeito, sentando em uma das janelas com as costas para fora. Quem de baixo observava via-lhe as ancas postadas, oferecidas ao contento da multidão. Hábito comum, que desde minha infância impressionava. Como ninguém nunca caíra? Pelo menos, até aquele dia foi verdade. Idalina estava exposta, pensamentos vazios, neutros, presa fácil ao descuido. Mãos ensaboadas, lisas, escorregadias, convidavam ao fatal. Corpo solto, pés leves, mãos sem garra, vida sem brilho. Sorrateiro veio um golpe, de vento, da mão do demônio, da senhora morte, na hora do café do anjo da guarda, ela desgarrou-se: braços giravam no ar, espumas ganharam os céus, corpo querendo voar, pés sem apoio, o chão pedia-lhe a presença. Idalina voou por 4 segundos durante um trajeto de 15 andares.

Você já pensou em quanta coisa pode fazer em 4 segundos? Sei que alguns homens correm 100 metros em pouco mais que o dobro disso. No atletismo várias provas, as de salto, arremessos e lançamentos, ocorrem em espaço inferior ao mesmo. Pode-se pedir alguém em casamento nesse tempo, o que depende do pedinte, do discurso, descartando-se qualquer preliminar mais demorada. Durante uma descida neste tempo muita coisa pode passar pela cabeça. Dizem os que diante da morte estiveram, e voltaram, para sua própria desgraça, que a vida toda corre diante dos olhos. Mito, fato, lenda, o que consta é que Idalina teve ali o seu momento de glória, viveu na pele algo que os escritores narram em seus delírios, que os músicos dedilham nas cordas dos instrumentos ou nas batidas nos teclados.

Aquele espaço de tempo era o muro que separaria seu passado do futuro e que talvez determinaria o final do seu ciclo de desventuras nesse mundo.

O porteiro do prédio sobressaltou-se: acreditou, de início, que um móvel, um objeto havia sido arremessado por um dos moradores. O chão tremeu na portaria. Que diabo seria isso? Abandonou a pornô revista que convenientemente escondia de todos e por pouco não teve um colapso. Idalina mergulhou diretamente em um dos brinquedos do pátio. As crianças não teriam por algum tempo onde balançar. Nem mesmo Salvador Dali, nos seus mais inspirados delírios, seria capaz de reproduzir em tela o amontoado no qual se convertera a serviçal. Moldada naqueles ferros, ainda respirava, graças a um benefício dos deuses. Duvido que fosse isso: talvez os mesmos, em seus gostos sarcásticos, cansados do tédio do Olimpo, desejassem testar os humanos, procurando diversão às nossas custas.

O porteiro discou para a emergência. Os socorristas demonstraram pontualidade escandinava e destreza suíça diante dos moradores atônitos, da pequena multidão que já se acumulava, sedenta por presenciar misérias, atraídas pelo cheiro de infortúnio, removeram os membros, ossos expostos, da jovem, que ainda teimava em viver.

O impressionante na aventura foi a sobrevivência da protagonista. A imprensa mal pode crer, virou nota, notícia, documentário, entrevista. Uma queda, um sobrevivente. A morte fora enganada, por certo tempo, sabemos sempre. Idalina mudou, declarou que nascera de novo, estava feliz, alegre, incrivelmente exultante. Ossos quebrados, uma perna amputada, toda remendada, porém feliz. Decidiu que voltaria aos livros, que cresceria, tornar-se-ia um ser humano de verdade, digno e útil à comunidade. Naquele tempo, naquele momento de reflexão de 4 segundos ela encontrou e reconheceu o valor precioso de uma vida. Para você meu amigo, quanto tempo será necessário? Conseguirá bater o recorde mundial de Idalina?