A felicidade pode ser a leitura de um belo haicai.
A felicidade pode ser a leitura de um belo haicai.
O que é a felicidade? O que nos traz ou leva à felicidade? A felicidade é um sentimento perene?
Quantas linhas, páginas e livros já se escreveu com a iniciativa de responder a estas perguntas! Difícil dizer se alguém tenha chegado e escrito a resposta definitiva. Todavia, não há como negar que muitas e belas palavras e mensagens foram escritas a respeito, desde o que se encontra gravado nos livros sagrados até aquelas mensagens que volta e meia recebemos nos e-mails - algumas delas, inclusive, interpretando ou elaborando uma mensagem, a partir de trechos dos velhos Livros, até nos pegando de jeito e, quebrando nossa natural incredulidade, para nos levar a um momento de transposição da realidade e momento, e entrar numa reflexão reconfortante, inspiradora ou, estimulante.
A felicidade, dizem os dicionários diz respeito a um estado ou sentimento de natureza pessoal, onde o ser se encontra num momento ímpar, constituído pela sua conformação consigo mesmo, independente do motivo. No dicionário Aurélio on line, por exemplo*, a definição que encontrei foi esta: "Estado de perfeita satisfação íntima; ventura. / Beatitude; contentamento, grande alegria, euforia, grande satisfação. / Circunstância favorável, bom êxito, boa sorte, fortuna...".
Disto decorre que a felicidade pode decorrer de um acontecimento momentâneo ou inopinado, ou - pelo contrário, pode ser o corolário de um longo processo, onde a fortuna decorre de um processo objetivo, desenvolvido pelo indivíduo. E a felicidade tem entre nós tal status que até querem enfiar seu conceito no Art. 6º da nossa Constituição ( mas, isto já é outra história).
Quero falar da felicidade decorrente de momento fortuito de sucessão inopinada, isto é, do sentimento que sucede independente de sua busca ou espera, daqueles, que encontramos no decorrer de nossas rotinas ou atividades e, cuja raridade nos faz pensar sobre ele, sobre nosso ser e, tudo o que cerca nossos dias.
Hoje eu tive um momento de felicidade assim, durante a minha rotineira visita ao Recanto das Letras, quando deparei com um comentário de uma colega sobre dois haicais que havia publicado e, resolvi visitar sua página, onde ela publica suas próprias elaborações haicaísticas.
Dentro de uma pequena coletânea intitulada "Haicais - 96 (dias chuvosos)", encontrei um haicai escrito pela colega Nete Brito que, ao fim, me trouxeram um momento de morna e intensa felicidade. A elaboração em questão, é esta:
"dia chuvoso --
dentro da velha padaria
a mosca zunindo"
Os leitores que tem alguma familiaridade com o haicai brasileiro sabe que uma de suas vertentes se orienta pelas regras do seu ancestral oriental, o haicu, motivo pelo qual, sua composição observa certas regras, das quais, por questão de pertinência, destaco a busca da reprodução do ritmo do mundo natural, representado pela sucessão de estações do ano, os três versos de 5/7/5 sílabas, a onipresença do kigo – termo que identifica a estação do ano, o "corte" ou kireji, que chama a atenção para uma situação destacada em um dos versos, a simplicidade do vocabulário - isto, para chegar a um resultado: despertar no leitor a reconstrução de uma imagem retratada e, ainda, percepção ou sentimento semelhante àquele que teve o criador em um tempo remoto - próximo ou distante*.
Vejam que interessante: um haicai é um produto cujo sucesso ou eficácia poética depende da validação realizada pelo leitor. Se o haicai não "dispara" no leitor sensação, sentimento ou reflexão parecida com a original - percebida pelo elaborador, então ele falhou como objeto, em razão da falência do seu objetivo.
Mas, quando o leitor encontra um bom haicai e, este lhe traz logo após sua leitura aquela imagem inicial na qual sua mente mergulha e, logo depois de tal evento, o leitor começa como que a se "movimentar" dentro da imagem construída e, nele vão se desdobrando outros eventos, outras sensações ou reflexões, de certa forma o leitor, entrou num momento de felicidade - contentamento, júbilo ou euforia, diante do que sente e, do que enfim encontra em si mesmo.
E agora volto ao haicai em questão: "dia chuvoso -- dentro da velha padaria/ a mosca zunindo". Alguém poderia objetar que, no haicai em questão, dois pontos poderiam chamar à atenção dos haijins, em relação à técnica própria: que a adjetivação da padaria está ali, talvez, como um complemento destinado à mera contagem das sílabas.
É que, aparentemente, parece haver um conflito decorrente da verificação de dois kigos diferentes, consubstanciados na referência ao "dia chuvoso" e, da presença da imagem da mosca doceira. Todavia, a expressão "velha padaria" sugere ou refere à memória - imagem presenciada em tempo passado. Disto decorre que, o suposto conflito relativo à identificação da estação não subsiste, eis que o "dia chuvoso", que sugere uma atmosfera muito típica - muito diferente de "chuva de verão," por exemplo -, está destacado no primeiro verso, pela presença do travessão, e assim, predomina dentro da composição. Além disso, é indubitável que a mosca foi movida à cena pelo olfato, o que confirma as impressões, cores e odores primaveris.
Mas, o caso é que, à parte a prática intermitente, sou leitor de haicai e, o que me importa, num primeiro momento, é a sua "viagem". E assim que li esta belíssima elaboração, me senti capturado pela imagem de duas portas abertas, uma luz mortiça depois de um balcão envidraçado, já a procura da origem do som sugerido - a mosca que voeja dentro do recinto da velha padaria.
E então, começo a perceber que à captura inicial da imagem, associado ao som sugerido, minha mente já está dentro de um ambiente familiar, talvez uma daquelas padarias que haviam tempos atrás, na cidadezinha em que nasci, cuja parede da loja, levantada somente até certa altura, deixava entrever o ambiente amplo e a chaminé do forno a lenha e tijolos aparentes.
Logo depois, meus olhos se voltam para a infinidade de pães, colocados dentro da vitrina, nas enormes cestas ovais sobre o balcão ou, que ainda estão nas formas. E encontro então, a razão da presença da tal mosca: o cheiro das roscas bisnagadas com um caldo dourado, resultante da mistura de açúcar, erva doce e canela, sobre o qual o padeiro salpicou coco branco. E, enfim, ouço no cômodo do fundo, a voz dos padeiros e, das formas de pão feitas de zinco, que movem ruidosamente, de um lado para o outro...
O lugar pode ser qualquer lugar. De qualquer forma, tem algo de familiar. E assim, compreendo que, a leitura daquele haicai me levou até as lembranças já meio desbotadas dos tempos de minha infância e parte da adolescência, quando vivia numa cidadezinha do interior... E, daí em diante, já não é reflexão sobre a intensa sugestão do haicai lido, mas o que decorreu dela. E insistindo nela, já imagino que da porta da sala ao lado, sairá um personagem conhecido, para me atender. E, voltando os olhos para a cena da rua, imagino certas pessoas vindo à velha padaria, em busca de víveres para o café da manhã, ou o lanche da tarde.
E sinto que estou num momento de regozijo e, de um sentimento que não pode ser outro, a não ser felicidade, pois meu contentamento está ligado à presença do sentimento de inteireza,decorrentes de vários fatores, que, de qualquer forma, decorrem do que fui e, sou e, do que é e me transmite o mundo e as pessoas que conheço ou cercam.
Mas, me recordo bem, que tudo começou com a leitura de um haicai brasileiro de uma colega haicaista, de 5/7/5 eficientes sílabas e três criativos e eficientes versos, publicados hoje, 22.11.2010 no Recanto das Letras.
* Como é fantástico constatar que o conteúdo de um haicu elaborado séculos atrás possa conter uma imagem tão "conservada" por assim dizer, que se forme e desdobre tão intensamente em nossa mente e sentidos, como acontece quando lemos um haicai de Bashô, Shiki, Buzon ou Issa, por exemplo! Alguém olhando pela fresta de uma cerca, o som de um sino que retine num vale montanhoso, a flor que surpreende com sua beleza, a partir de um caule no meio do estrume, o campim que cobre o pátrio de uma casa destruída deitando ao vento, uma linda mulher surpreendendo com sua graça e beleza os transeúntes, um caracol subindo demoradamente o tronco de uma árvore (levando tanto tempo que parece o prazo de subir uma montanha)...