O espaço das pessoas

Obviamente que a idade já me conferiu um certo entendimento sobre as diferenças entre as pessoas, nas suas mais variadas preferências e me fez refletir muito sobre algumas questões humanas. Cada uma tem “o seu tempo” para realizar alguma coisa, para traçar seus objetivos, para chorar, para amar, para recomeçar, para determinar o seu espaço. E tem também os seus gostos, o seu jeito e até mesmo o seu cheiro distinto.

Mas pretendo tratar aqui das casas, das pessoas, seus abrigos, seus ninhos. Venho percebendo nitidamente que, como tantas outras coisas, elas são um reflexo das suas próprias vidas.

No ano passado visitei a exposição das Obras selecionadas no 18º. Salão de Artes da Câmara Municipal de Porto Alegre a convite de uma grande amiga de longa data, Maria Eunice Araújo, que simplesmente deu uma “reviravolta” em sua vida. De profissional bem sucedida na área de Tecnologia da Informação, resolveu parar com tudo e virar Artista Plástica, já casada, com duas filhas na adolescência e na faixa dos 40 anos. E deu certo! E cá entre nós: está mais bonita e feliz!

Na exposição, no meio de belíssimas obras, justamente as dela me chamaram a atenção. Tratavam-se de painéis de fotos de geladeiras abertas (dispostas ao lado e abaixo umas das outras). Algumas em estilo normal, outras muito modernas, outras antigas e, em todos os estilos, algumas em estado de grande organização e outras totalmente desorganizadas internamente, até mesmo meio improvisadas. Uma profusão de geladeiras enfileiradas.

Posteriormente, através da minha visível curiosidade, ela passou-me um breve relato sobre as obras:

Esta série surge como desdobramento de vários trabalhos iniciados em 2007, quando comecei a produzir fotografias do interior de refrigeradores em uso diário em diversas residências do estado do Rio Grande do Sul (...) o registro foi feito em seu espaço usual, flagrando os refrigeradores assim como os encontros, sem qualquer intervenção prévia, de forma que os habitantes da casa agissem exatamente como normalmente o fazem. Vejo na geladeira uma imagem como se cada um dos habitantes da casa pudesse contar uma história, algo do cotidiano, guardasse peculiaridades e manifestasse nela, de alguma forma, sua intimidade. (...) Foi-me despertado o interesse por registrá-las, a partir do momento em que me deparei com uma geladeira a qual, quando abri sua porta, verifiquei estar “lotada”, os objetos pareciam querer se atirar para fora. Senti que refletia, de certa forma, o íntimo daqueles moradores. Isto me fez pensar e iniciar meu processo de trabalho. Detenho, desde então, meu olhar nas singularidades das geladeiras, pensando nos hábitos, na organização, na forma de agir, nas preocupações, nos descasos, nas prioridades e nas demais características peculiares de cada família. Algumas geladeiras tão coloridas, outras sombrias, acompanhando a forma de ser de cada morador. Observo as suas diferenças, expressando assim, meus questionamentos acerca da realidade de diversas culturas ou camadas sociais, através de uma linguagem contemporânea, onde o tema é pretexto para a abordagem sociológica. Interessa-me, também, presenciar as reações de estranhamento do participante quando peço para fotografar sua geladeira, bem como observar como se dá a relação do espectador com a imagem em exposição a qual, muitas vezes, lhe é familiar. O objetivo é criar um diálogo entre o participante do processo, o artista e o espectador sobre os condicionamentos sociais e culturais que regem o comportamento dos indivíduos, partindo dos hábitos no seu cotidiano familiar.

Na minha análise, anterior ao recebimento do relato transcrito acima, os trabalhos demonstraram, o retrato perfeito das casas onde as geladeiras foram fotografadas! E, dentro delas, as pessoas que as habitam. A meu ver, uma analogia a olhos vistos!

Na verdade, a grande admiração pela criatividade da Eunice me instigou a escrever essa história.

E por ela começo com uma visita que fiz no mês passado, pela primeira vez, na casa de outra amiga. Quando entrei no hall algo espantoso aconteceu. Tive a sensação de que aquele não era um lugar para me abrigar para um bom papo. Tudo estava muitíssimo limpo, os móveis muito modernos – pareciam ter saído das fábricas naquele mesmo dia – esteticamente todos muito bem colocados, almofadas simetricamente dispostas no sofá E eu? Como me portaria? Poderia sentar naquela poltrona forrada de brocado branco, correndo o risco de ser tocada por uma imensa planta que ornava o canto do ambiente? Poderia pedir um copo d água? – estava sedenta – Sim, porque a cozinha era algo indescritível. Nenhuma louça por lavar, tudo muito clean, brilhoso e cheiroso. Acabei- me questionando: Algum jantar, mesmo que com pouco azeite e tempero, poderia ter sido feito naquele local, pelo menos em uma noite?

A área de serviço sem roupas no varal, mais parecia a cozinha em miniatura – nada de vassouras, rodos ou produtos de limpeza (e não tinha muitos armários não!). E pasmem: o lixo – que eu precisei usá-lo para descartar um papel de halls – totalmente vazio e forrado com saco de lixo simetricamente contornando o mesmo!

Minha pergunta: a diarista acabara de sair ou a minha amiga vivia sempre dentro daquele apartamento, em minha opinião, inerte?

Livros? Não enxerguei um sequer, muito menos uma folha de papel, um lápis, nada.

Naquele momento fiquei remoendo certa angústia, pensando na minha casa, tão necessitada de uma boa diarista, tão cheia de quadros e quadrinhos, adornos, vários artesanatos feitos por mim em momentos diversos da minha vida, anotações totalmente assimétricas em um quadro magnético branco escondido atrás de uma porta, abajures e, especialmente de lembranças de pessoas queridas espalhadas por tudo.

Seria eu uma pessoa tão desorganizada? Mas eu sou virginiana! Como pode?

Mas logo a minha alma falou (sim, a minha alma fala!): eu preciso ouvir os sons da felicidade e da alegria através de certa desordem que me instiga a mudar sempre. E pensei: Eu não conseguiria dormir uma noite sequer na casa da minha amiga, mesmo tão organizada e com tamanho bom gosto. Certamente não sonharia coisa alguma.

Gosto mesmo é do meu ninho. Ele tem o sabor de contar comigo mesma por inteiro e de coisas que me são caras, que “tem a minha cara”, que me fazem viver melhor. Ela não deixa de ser uma das partes mais integrantes da minha vida que, pra mim, sempre é cheia de mudanças, de coisas diferentes, de cores e até mesmo de alguns sabores.

Penso que sou eu, que continuamente busco algo diferente para criar e tudo isto acaba ficando à minha volta, como sinal de que é preciso mudar, mudar sem medo, fazer e acontecer.

Já estou sem espaços em casa (quase um suplício pra mim). Sempre há várias opiniões a respeito disto: alguns dizem que o meu ninho é “poluído” demais; e outros que é por demais agradável e acolhedor, mesmo que simples e bem menor do que gostaria.

Não me importo! Continuarei com os meus abajures, os meus quadrinhos, a escultura do meu tio querido, falecido há anos, ganha recentemente com o maior carinho de sua filha, o meu mural e os meus trabalhos manuais enfeitando o meu ninho, o ninho que me abriga e que é o meu maior cúmplice, e continuarei indo ao banheiro toda vez que tiver vontade, sem medo de deixar cair um fio de cabelo. Como isto é importante pra mim!

Na casa da minha amiga não ousei usar o banheiro (sim! banheiro, porque não tem lavabo). Inacreditável! Logo eu, que adoro um banheiro – o local certo para eu “pensar na vida” e rezar o meu “Santo Anjo”.

Apesar de toda a descrição, vale ressaltar que a casa citada é simples, pequena e assentada em um bairro nem tão valorizado. As diferenças certamente residem aí. Minha amiga certamente é feliz na sua casa.

E, retornando aos trabalhos da Eunice, fico a imaginar que a geladeira da minha amiga deva ser um mote de organização de dar inveja a qualquer administrador de empresa corporativa.

E a minha? Ah não! Ela ainda não foi fotografada! Mas se for, certamente será sem medo.

Não pretendo ir além da minha realidade e já consigo assimilar as “diferenças” de uma forma bem mais razoável que antigamente.

Penso que já cresci um pouquinho.

(Publicada na II Antologia Poética da AELN - Academia dos Escritores do Litoral Norte Gaúcho) - Nov-2010

Rosalva
Enviado por Rosalva em 21/11/2010
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