Quebrando os pratos
Publicada no Caderno Mulher/Jornal Agora, em novembro de 2010.
Dois dias antes do combinado e o cardápio estava decidido. Ingredientes cuidadosamente escolhidos, dosados e misturados conforme ordenava a receita, incorporavam uma massa vistosa que, em breve, estaria servida. Tudo parecia correr na mais estranha ordem, até que, no dia seguinte, a prova final revelou um problema: algo parecia estar faltando, ou talvez sobrando, naquela tão controlada perfeição que, abandonando a metáfora, geraria a próxima crônica.
O resultado dessa primeira tentativa, muito ortodoxa e pouco intuitiva, provavelmente agradaria aos paladares fiéis e exigentes que a degustariam logo em seguida. Então, por que contrariar o relógio e o bom senso e, num surto de rebeldia, trocar o confiável por algo novo, sem receita e ainda sem nome, assumindo, assim, os riscos de uma mudança repentina? Porque, algumas vezes, é preciso livrar-se das amarras da opinião alheia para satisfazer à própria fome, nem que para isso seja preciso quebrar os pratos! Egoísmo? Não, honestidade.
É árdua a tarefa de viver na busca pela aprovação externa, tentando incessantemente satisfazer a expectativas que não são suas, enquanto as suas são cada vez mais postergadas, ignoradas, sufocadas! Isso sem contar com o fato de que ninguém sabe claramente o que o outro espera – a verdade nem sempre está no que reflete a superfície.
Muitas vezes, o que as pessoas esperam de você* (*indivíduo estranho que deve pertencer a alguma outra categoria, ainda não descrita) é que você compareça – disposto ou não – aos momentos importantes e, de preferência, que esteja pronto para festejar sempre que requisitado, levando estampado no rosto sempre o seu melhor sorriso. Retomando a metáfora: esperam que você lhes ofereça uma sobremesa doce o suficiente para tornar qualquer outro sabor irrelevante.
Noutras vezes, tudo o que elas querem é a certeza de encontrar ao menos um de seus ombros, cansado ou não, sempre disponível para que elas possam sobre ele derramar os problemas delas – ainda que para isso os seus tenham que aguardar ao chão indefinidamente. Ou seja, querem de você um prato vazio onde elas possam despejar tudo aquilo que lhes é indigesto para que você ou mastigue ou melhor tempere, e só então devolva-lhes o mesmo prato, pré-digerido e, agora, apetitoso.
Mas na maior parte das vezes, o que elas realmente esperam que lhes seja oferecido é um prato simples, morno e insosso, que não exija do paladar dedicação para contemplar, nem sequer compreender – também, não é para menos: de complexo já lhes bastam os próprios dilemas, que tanto lhes enchem a boca e mantém ocupada a língua. E foi visando atender a tal demanda que se criou o protocolo do discurso vazio, tão presente em nosso cotidiano, tendo como seu maior representante a mais popular de todas as perguntas – Tudo bem? – cuja resposta, quem sabe? E quem, de fato, quer saber? Uma minoria generosa para a qual ainda vale a pena preparar os mais saborosos pratos.
E o timer, enfim, avisa que este está pronto! Talvez não exiba a melhor aparência, nem seja a mais saborosa das opções, mas certamente traz consigo, ainda que sob uma crosta amarga, a essência franca que tanto caracteriza este gourmet. E, por esta razão, satisfaz imensamente o paladar de quem o serve.