Baratas na Hora da Marmita
Toda magrinha e branquinha ali, indefesa, mordendo uma maçã e lendo aquele livro que todo mundo anda lendo no Metrô. Eu poderia pegá-la no colo e chutar a porta de um quarto de hotel em Angra dos Reis e fazê-la a mulher mais feliz do mundo. Até mesmo chutando a porta de um pulgueiro no Largo do Paissandu eu poderia fazê-la a mulher mais feliz do mundo. Mas isso é o que eu penso, e é um pensamento tão passageiro como uma brisa de verão, pois sei que não posso fazer nem uma barata feliz pois, com a minha insônia, levanto na alta madrugada para entornar a caixa de leite goela abaixo e interrompo seus acasalamentos ou solitárias divagações. E, como uma barata que fica pendurada no batente da porta analisando os perigos de uma possível investida em busca de alimento, fico aqui conjeturando com meus botões a melhor forma de conseguir dirigir um "oi tudo bem" pra branquinha erudita sem ser esmagado pela sola do seu desprezo e desdém. Eu deveria estar acostumado com essa minha insegurança ou então buscar ajuda (em psicólogos, livros de auto-ajuda, revistas tititi e sites de adolescentes que colocam o gelo no copo de meio litro e treinam para o primeiro beijo da vida) pra tentar subverter essa moleza que é como um domo que protege o mundo do furacão libidinoso que rodopia e causa esses transtornos existenciais dentro de mim. Passo a língua nos lábios, umedecendo-os, como se fazendo isso as palavras pudessem escorregar e sair da boca mais facilmente. No entanto, me mantenho estático e sentado admirando seus bracinhos finos e desviando a mente para algo mais proveitoso do que elucubrações sobre abordagens de mulheres exuberantes. Essa erva daninha que eu chamo de barba cobre alguns cravos e me deixa com a cara de mau, se eu faço o trejeito correto arqueando as sobrancelhas; esse cabelo que triplica o tamanho da minha já enorme cabeça está a cada dia mais insuportável de se manter com a chegada do calor e com a incursão de uns fios teimosos no meu globo ocular. Minha aparência não é das melhores e ao invés de procurar meios para angariar ganhos e comprar um pacote de 10 dias em Acapulco eu fico imaginando como seria minha vida se eu tivesse alterado o curso de algumas atitudes no passado. Não há meios de obter a ambição que as pessoas que estudaram comigo do primário ao ensino médio conseguiram ter e agora estão bem de grana, aí, exemplos de sucesso na tal da sociedade que eu não consigo entender, assim como não consigo entender como esse Sonho Médio não me conquista e eu julgo que viveria bem melhor se me dessem alguns poucos hectares no meio do nada ou então um barracão no meio do Nepal e alguns bodes que me ajudariam a encher os baldes na nascente de alguma cachoeira de água cristalina. E por falar em água, é quando estou chegando na foz de alguma atitude que poderia mudar meu modus operandi surge um meandro para estragar todo o meu raciocínio. A pessoa senta na mesa e interrompe meu devaneio e, imediatamente, eu sinto um pouco de empatia com as baratas que passeiam calmamente na pia da cozinha antes que eu apareça com meus falsos bocejos. Talvez seja por isso que elas ainda não dominaram o mundo: tem sempre um sonâmbulo para estragar seus planos. Agora não estou mais sozinho, infelizmente. Mas, pensando por outro lado, eu nunca estou sozinho. Estou sempre dentro de um ônibus ou metrô cheio ou então em casa, no computador, conversando com vinte pessoas ao mesmo tempo. Até mesmo aqui, agora, nesse refeitório, estou cercado de pessoas indo pra lá e pra cá com suas marmitas e lanchinhos. Mas as pessoas parecem desaparecer, às vezes. Isso é bom ou ruim? Minha vida é questionada. Foi questionada pela mesma pessoa inúmeras vezes. Sempre é. Trimestralmente eu respondo educadamente que nada se alterou, além do rombo na minha conta bancária. Respondo as mesmas perguntas sobre o meu cabelo e a minha barba. Perguntam se eu ainda estou com o habitual harém. Pergunta esta que me faz rir com sinceridade, dada a minha difícil situação de celibatário. Apesar do inicial incômodo pela interrupção do meu pré-nirvana, me sinto bem conversando com essa pessoa. Até o momento que ela segue os meus olhares até a Branca de Neve e tenta, à distância, envenená-la com um comentário depreciativo sobre a suposta forma quadrangular de seu hemisfério glúteo. Por que as pessoas são assim? Por que logo tem que arranjar um defeito para desvirtuar o que cobiçamos, só pra se sair por cima numa disputa que só existe dentro de suas próprias cabeças? A pessoa se levanta e eu olho seu traseiro. Ele inexiste e, aproveitando a deixa, devo ressaltar que seu rosto não é dos mais bem agraciados pelo dedo do Divino. Sai pomposa, rebolando seu esqueleto de onde escorre a inveja do tutano. Não há clemência, não há um minuto de sossego, logo sentam e arriam a tampa de um pescadinho da sexta-feira retrasada e o cheiro arromba as minhas narinas e os assuntos são revoltantes pela sua falta de conteúdo (que me apeteça, devo frisar) e eu quero chegar ali, bater a mão na mesa dela, tomar a maçã de sua mão e dizer: "ô minha querida, por acaso eu sou invisível ou é essa minha aparência desleixada de pseudo-filósofo que não faz com que você me dirija um mínimo olhar que seja? Pois veja bem, você, pelo que eu tenho observado, devora um livro por semana e creio que, com isso, sua percepção das coisas seja um pouco mais, como posso dizer?, puta merda, não encontro palavra, enfim, é, é isso aí, qual é o meu problema?". Morderia sua maçã, colocaria a mão na cintura e ficaria batendo o pé, esperando uma resposta que quem tem que responder é quem fez a pergunta. Talvez seja isso o que eu faço sempre: seguro o meu potencial (qual?) e talento (qual?) e capacidade (qual?) com uma mão e coloco a outra na cintura e fico esperando uma abdução ou uma cadeirinha na máquina do tempo para me transportar até o meu último sofrido suspiro ou então até o dia da minha glória máxima. Já fizeram um filme sobre isso. Aquele do controle remoto, vocês sabem qual é. Eu fujo das coisas assim como fujo do assunto que quero enfocar no que escrevo. Mas a realidade é um pé-no-saco, na verdade. Essa busca incessante por nada que é metafísico me dá preguiça de existir. Pecunia non olet. Cabeças vazias e bolsos cheios e eu com a minha cabeça vazia com o bolso vazio e vagando no mundo tão alheio quanto o meu próprio bolso vazio puxado pra fora querendo voltar pra calça e segurar o molho de chaves dos medos, incertezas, inseguranças, in in in in in mil coisas in que me deixam out, oh, inferninho particular fomentado pelas chamas da estagnação e da supramencionada falta de ambição que os colegas do colégio pegaram e transformaram em papel moeda. E que vantagem Maria leva? Quem é a Maria? Não há retorno para o investimento porque o risco é baixíssimo e o investimento não existe - ela continua folheando seu best seller, levantando os olhos hora ou outra pra me surpreender e enrubescer as minhas maçãs do rosto. Ô parvoíce arraigada, intrínseca, praga, tatuada na alma, estampada na retina, faiscando no brilho do olhar, dançando com cada passada incerta, gesticulando como uma sombra a cada levantamento de braço, acenando pro mar da dúvida, acenando pro espectral náufrago que é exteriorizado em palavras, odes à fantasmas de curvas voluptuosas que nunca as contemplarão e, quando sim, não darão a mínima, retirarão a bóia de tal mar e o deixarão à deriva, sendo lambido pela inconstância da maré da suposta e hostil, em seu âmago, indiferença. Não sei que raio de desespero é esse, com tanta coisa importante a ser feita para tornar as coisas um pouco menos insuportáveis. Egoísmo em massa, eu diria, já que não sou o único que se envereda nos caminhos bifurcados da própria existência. Oxigenação no cérebro seria uma boa agora, ao invés da xilocaína de mais três horas resolvendo o problema dos outros e adiando os próprios pensamentos. Mas tudo bem. Lanço uma última olhadela para a devoradora de livros-e-maçãs e volto ao trabalho. Falar que a tarde está boa sessenta vezes por hora sendo que a tarde está cada vez pior, sessenta vezes pior por hora. Mas tudo bem, também. Nada é para sempre, tudo é sazonal e esse meu momento não é exceção alguma na regra. Vamos viver, ué, se é isso o que temos pra hoje.