UM POUCO DE LOUCURA

Naquele dia , acabei tendo aulas só até a hora do almoço . E diante das possibilidades , sempre remotas , do instituto fazer ocupar os dois últimos horários , decidi pegar o ônibus de volta para casa . Nem cheguei a esquentar no ponto . Logo apareceu o carro da linha 498 vazio , ideal para que eu repousasse os pensamentos que já me doíam a cabeça desde muito cedo , tal era a minha preocupação com a saúde do marido , distante por razões do trabalho . Subi , calmamente, os degraus da escada , passei pela roleta e me sentei na cadeira à direita , a que recebeu o nome popular de assento de viúva . Nisto , reparei que já tinha percorrido toda a rua Conde de Baependi , faltando pouquinho para entrar no Largo do Machado . Engraçado , isto . Quando não se está com pressa, o planeta demora a completar as suas voltas mas o trânsito no Rio de Janeiro , como num passe de mágica , se desenvolve com a maior das facilidades ...

Na rua do Catete , comecei a procurar pelo outdoor da Hortifruti , tentar ver se tinham publicado outra charge da revista Cascas . As declarações do Limão , acusando de homicídio as centrífugas e os espremedores de fruta , e da Maçã , récem chegada de New York , toda serelepe , já tinham conseguido me arrancar sonoras gargalhadas. Sem dúvida , a maior das estratégias de marketing que eu já testemunhei nesta minha vida de consumidora . Então , o ônibus passa pelo Amarelinho da Glória e vai direto para a quebrada do Russel , ensaiando a curva que leva ao Mergulhão , na Praça XV. Aí eu dei de cara com ele , estampado com o limo seco visto à distância , enorme de estatura e largo no espaço de terra que tomava . Por uns dois segundos , me veio o seu nome e a sua importância histórica para a cidade . Mas fugiu tudo , assim que eu tentei verbalizar qualquer coisa a respeito , baixinho . Aliás , preciso dar um fim nesta mania . Estive sob a ameaça de ser rebocada para dentro de uma ambulância do Pinnel mudando, em definitivo, o meu código de endereçamento postal. Aconteceu num supermercado , um fim de tarde cansativo , enquanto eu reclamava do preço do bolo diet com as latas de legumes em conserva . Traição de aprendiz de dona de casa .

Mas não bastasse a minha surpresa atrasada – outra mania , ignorar o tempo e os relógios - , também vi aquele homem deitado aos pés do monumento . Vestia um blusão roto , entreaberto na altura do peito , uma bermuda rasgada até perto dos joelhos que exibia , distraidamente , a sua coxa . Barba e cabelos em profusão , dando-lhe a aparência de um troglodita, uma perna esticada e outra flexionada levemente . Dormia um sono letárgico e debochado , em plena via pública , logo após as badaladas do meio-dia . Eu juro , não consegui nem gaguejar . E olhem que eu sou mestra nestas coisas . Só que o ônibus foi apertando a velocidade e a aparição fui sumindo do meu campo de visão .

Riscando o Atêrro do Flamengo descubro novos rostos , uns aqui e outros acolá . A impressão de que foram postos desta forma na intenção de conferir adorno à paisagem urbana da cidade , tão carente das árvores de outrora . Início da Pres. Vargas , em redor da Candelária . Mais ainda . No entanto , o detalhe curioso . Movimentavam-se por entre os carros durante a parada do sinal , vendendo mil e uma inutilidades , observados pela mulher em posição de ajoelhada , oferecendo as mãos ao firmamento. Quem sabe , pedia à Deus por cada um deles e pelos outros que fui percebendo ao longo do caminho , rigorosamente ,desprovidos de idéias capitalistas , largados à própria sorte na miséria e nos perigos das ruas , escandalosamente , emoldurados por viadutos , cantos negros de sujeira e odores nauseantes . Nobres habitantes , indigentes na Cidade Maravilhosa .

Uma freada brusca , a chuva de palavrões . Praça da feira hippie , em Bonsucesso . “Por quê o cidadão não usou a faixa de pedestres , lá adiante ?” O motorista mal conseguia disfarçar a sua revolta , imediatamente , sustentada pela maioria dos passageiros . E eu continuava ali , sentada , imóvel . Será que eu tinha visto , realmente, aquele homem ? Ou será que a sua aparição aos pés daquele monumento não passou de miragem , ilusão de ótica produzida pela temperatura do choque de estações ? Chego ao ponto final , convencida por dois fatos . Perguntas e respostas encontramos todos os dias . E monumentos vivem sendo construídos ao longo das gerações . Ninguém precisava ter pressa. Eu não precisava ter pressa. E nem taquicardia .

Josí Viana
Enviado por Josí Viana em 18/11/2010
Reeditado em 12/12/2014
Código do texto: T2622016
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