CANTIGA Nº 36
Escondido por detrás da porta , ele sempre espiava . Tímido e silencioso . Via muitas pernas , muitos rostos e ouvia milhões de vozes, um desfile sonoro apenas para testar a sua capacidade de investigação . Era certo que não havia pedido para ficar ali . Porém , no dia da sua chegada, fez o que sempre lhe fora ensinado: permanecer imóvel onde quer que o colocassem , fazendo o maior dos esforços para dissimular qualquer traço de revolta . Se era feliz daquele jeito ? Todos acreditavam que sim , até porque dispensar um minuto sequer de tempo , dedicando-o à observação dos detalhes de sua aparência , não lhe parecia importante. E assim , ele fazia confirmar a sina dos imortais, atravessarem gerações sob o véu da invisibilidade calculada .
“Esperem um pouco ... Não sei mas acho que foi durante o inverno , num dia em que os raios do sol teimaram em riscar o céu logo depois do primeiro desjejum dos humanos .Também a noite nunca fora tão fria e escura, eu ainda me sentia gelado . Aí , ela apareceu . Sorridente como entendia de ser. Confesso , cheguei a me arriscar a ser notado , ensaiando um gemido breve . Conduziram-na até o meio da sala . Primeiro, de costas para mim . No meio de uma brincadeira com a bola , ela foi aninhada e colocada numa cadeira amarela , destas que as outras crianças usam para sentar a mesa na hora de mexer com a massa de modelar . Vi o seu rosto suave , dedicado as mais variadas expressões na intenção de comunicar-se . E eu , parado ali no canto, podia entendê-las , a todas ! Senti o meu corpo estremecer quando ela se aproximou e fui capaz de lamentar a minha condição de paralisia , esta tristeza morna em que a minha vida inteira havia passado mergulhada . Não podendo mais resistir às ordens de silêncio absoluto , deixei escapulir o som de um lamento . E para a redenção de todos nós , ela virou o pescoço na minha direção , apesar de todas as suas dificuldades “.
Dias e noites acontecem diferentes naquele lugar . Não há mais o peso das horas , a imobilidade das posições , a combinação técnica das imagens e nem o descrédito aos sons nascidos , exclusivamente , dos movimentos humanos. Respira-se mais a poesia , deixa-se escorrer a lágrima da emoção , sente-se a esperança de um mundo melhor . Não consigo saber a razão exata de tudo isto . Mas digo que nem tento imaginar , posto que o óbvio mostrou-se diante dos meus olhos , tão claro e inocente , tornado vivo pelas mãozinhas de uma criança a fazer a sua cantiga de ninar para a humanidade . Tenho a certeza de que , pela graça de Deus Nosso Senhor , uma menina encontrou a sua música naquele modesto brinquedo . O piano de Natália.