A VELHA

A Velha foi uma mulher porreta. Com seus próprios códigos de conduta, sua forma de viver, no jeito de criar sua prole, na capacidade de cultivar amigos, no modo como conquistava as pessoas com seu jeito simples da roça, plenamente adaptado às agruras da cidade grande.

Conheci a Velha por um motivo muito circunstancial: era mãe da minha mulher, minha sogra, sogras sofrem com as más línguas, algumas das histórias delas podem até ser verdadeiras, mas, no meu caso, acertei no milhar, a Velha foi uma sogra bacana, nunca interferiu em nada, me deu carinho e respeito, deu amor para os netos, para os filhos dela nem se fala, e olhe que alguns desses filhos foram contemplados com características especiais, nem sempre compreendidas e aceitas por nossa sociedade preconceituosa, em geral perversa com os diferentes.

Mulher do povo, possuía a dignidade e soberania dos pobres bem criados nos princípios familiares de outrora, não era de pedir favores, mas, também, não era de recusar auxílios, desde que sua vida não fosse invadida, a ninguém dava o direito de dizer como deveria fazer isso ou aquilo.

Magrinha, frágil como uma avenca, não era dada a vícios, exceto um cigarrinho desses mais baratos de vez em quando, não tinha uma saúde de ferro, mas ia tocando o barco até sentir os primeiros abalos reais, um maldito AVC pegou a Velha, tirou parte dos seus movimentos, mas, retada que era, fez domésticas fisioterapias próprias nos cabos de vassouras e nas beiradas das pias, auto-ajuda na essência da palavra, recuperou parte da mobilidade perdida, continuou a vida cuidando da prole, gozando dos prazeres de ser uma matriarca discreta, sem as pompas em geral dispensadas às mulheres guerreiras.

Mas o tempo é implacável, o AVC inimigo retornou mais potente, conseguiu derrubar a Velha, ganhou a batalha, mas não a guerra, abateu o corpo, mas não o juízo, a cabeça da Velha continuou a mesma, embora a limitação imposta pelas rodas da cadeira ficasse visível no seu semblante às vezes tristonho. Mas era coisa momentânea, nada que não pudesse ser superado pela presença, amor manifesto e gaiatice dos netos, assumidamente apaixonados por aquela criatura de aura quase visível, porém uma vovó nem sempre tão politicamente correta, de quando em vez soltava seus palavrões, dirigia impropérios para eventuais desafetos.

Convivi com a Velha nesses seus últimos anos de vida, evidentemente passei a ser integrante do seu grupo de fãs, a presença da Velha na nossa casa foi um privilégio para todos que tiveram a oportunidade de compartilhar sua sabedoria, espirituosidade, firmeza, sinceridade, e também seus pequenos “defeitos”: ela era implacável com os “feios”, e com quem atrapalhava seus momentos íntimos de meditação e delírio com a vida rural que há muito já não existia, principalmente se quisessem espantar o tal do cachorro preto que corria dentro dos seus sonhos.

Mas um dia Caronte anunciou sua vinda, e até foi complacente dando um tempo extra para despedidas e últimos carinhos, antes da Velha transformar-se em energia pura, exatamente numa sexta, dia 13, dia de azar para uns, para outros dia dos grandes acontecimentos. O rito de passagem foi bacana, ao gosto da anfitriã que partia, tudo muito belo e simples, nem padre foi necessário para encomendar a sua alma. No velório, melhor dizendo, na festa de despedida, a saudade e o respeito geral da platéia exprimiram-se em reza, cantoria, poesia e discretas lágrimas, e o sentimento geral de eternidade, transcendência, e lição de vida como grande legado, foi o que cada um de nós levou no retorno para as nossas casas.

A Velha se foi do jeito que percorreu a vida, muito na dela, ensinando tudo a todos, uma eminência parda do bem, que, com certeza, vai continuar influenciando nossas existências, até que, quem sabe um dia, possamos juntar às dela as nossas energias, e espalhar por aí sua mensagem de bem viver. Certamente teríamos um plano terrestre bem melhor.

Salvador, Rio Vermelho

Novembro 2009