A BARBEARIA

A barbearia fica no centro do Pelourinho, em Salvador, sempre esteve por lá, desde antes do Centro Histórico ser transformado na paisagem cenográfica imposta pelas reformas dos prédios no início dos anos noventa.

Não está no mesmo lugar de origem (na minha juventude eu ia lá cortar cabelo e o ponto era na esquina da Rua do Açouguinho), porém numa casa em frente ao Solar do Ferrão, com instalações modestas, mas plenamente adequadas à sua clientela, composta predominantemente por negros, de todas as idades, nativos da área e vindos de outros bairros populares, além de ocasionais estrangeiros despojados, curiosos sobre a vida cotidiana em Soterópolis.

Os clientes na sua maioria vão lá por serem fiéis à competência técnica dos filhos de Seu João, profissionais capazes de fazer de forma magistral um “traço”, um corte V.O. ou laje, desenhos exóticos nos couros cabeludos de usuários mais vaidosos, e os tradicionais cortes comuns e barbeados que ajudam a galera a manter o prazer com sua própria estética, uma efetiva contribuição para a auto-estima nos desfiles particulares de fim de semana.

Mas a barbearia é também um clube. Pode-se assistir TV, jogar damas, ler jornais e revistas vencidos, e, principalmente, jogar conversa fora. Mulheres, relacionamentos, preferências sexuais, futebol, religião, racismo, vida alheia, drogas, política, polícia, malandragem, reformas no local, bairrismos baianos, tudo é assunto, geralmente em papos inconclusos, cada um vai para um lado, mas no final o bom mesmo é sempre a interminável polêmica.

E tem as pessoas, o verdadeiro patrimônio do local. Hoje lá estavam, além de Zé e Moacir, os cabeleireiros do plantão da tarde, um negro de meia idade que nada falou (devia ser mudo, mas também tinha pinta de estrangeiro); DVD, um jovem negro e magro cujo apelido vem do fato de ter como ocupação a venda de DVDs piratas; e Cantor, um mulato de cabelo estiloso e espetado, que também leva a alcunha em função da atividade profissional. E finalmente eu, que embora sem vulgo prévio, nesse dia fui chamado de insistentemente de “Autoridade” por Cantor, acho que em função da minha idade (57), altura (1m 96cm) e o cabelo branco modelo V.O. sendo cortado por Zé.

Papos variados, mas os assuntos predominantes foram a habilidade de Cantor com as mulheres, principalmente as idosas e endinheiradas, e uma possível relação amorosa de DVD com um cliente gay, fato sem nenhuma comprovação de veracidade, mas um bom mote para curtir com a cara do cidadão, já que ele mesmo abriu a brecha quando contou que um cliente gay tinha se derramado para os lados dele.

“Ninguém se abre se você não der mole”, lançou Moacir, pondo em dúvida a masculinidade de DVD, que indignado se disse assediado pelo cliente, veado ele não era, o gay apenas era um consumidor habitual de seus produtos piratas, esse negócio de veadagem não dava certo com ele. Muitas idas e vindas, e no final ficou esclarecido que DVD era espada, bem casado com uma mulher branquinha, fato que já ia servindo para outra contenda quando Zé disparou: “ele só gosta de mulher branca. É gigolô!”.

Mas o caso ficou por aí com a interferência de Cantor, que abriu um novo tema de discussão: “gigolô tem honra, quem não tem honra é homem que abaixa as calças para outro! É ou não é, Autoridade?” Nem tive tempo de dar minha opinião, Moacir respondeu por mim, “gigolô tem honra é de gigolô”, e, felizmente, o assunto descambou para o sucesso de Cantor com as mulheres, Zé se apresentando como testemunha da performance casanova do conquistador: “dia desses pintou uma gaúcha gordinha, essa era nova, Cantor encostou, levou no papo, o dia tava quente, passou um sorveteiro, a gaúcha mostrou desejo, Cantor chamou o cara, tomou sorvete com a gaúcha, depois virou pra ela e ordenou: paga aí!! A criatura pagou sem piscar.” Cantor completou: “depois ela me levou pro hotel”. Aí veio também à tona a história de uma distinta senhora, uma gringa já velhinha, acho que alemã, a qual religiosamente freqüenta o verão baiano, sempre na companhia de Cantor, um mês de mordomia em hotéis cinco estrelas, sem botar um puto na jogada. “Não tenho grilo com isso não. Na hora da conta não me manifesto, faço cara de paisagem!”

De frente para o espelho, Zé já concluindo os detalhes finais do corte, rio da assumida cara de pau de Cantor, gigolô deve ter realmente sua honra. “Autoridade gostou, achou engraçado...” disse Cantor, orgulhoso da sua competência amorosa e sagacidade financeira. Zé termina o corte, o cabelo ficou bacana, pago os R$ 5,00 que devo, me despeço de todos, cumprimento “Cabôco”, o cidadão que está chegando, subo a ladeira e dou seqüência a mais uma sexta no Pelô.

Salvador, 29 de novembro de 2008