UTI - Uma Travessia Infinita
UTI - Uma Travessia Infinita
Meu celular desperta às seis horas da manhã. O coração dispara.
Descobri a três meses que preciso fazer uma cirurgia no coração. Hoje seria o dia. Levanto-me sem fazer barulho para não acordar meus filhos e minha mãe. Não quero me despedir. Acordo apenas meu marido.
A internação é às sete horas e a cirurgia, ao meio-dia. Choro meses de lágrimas. Meu marido me acompanha. É o que preciso.
Ao chegarmos, encontramos meu irmão e um amigo. Fomos para o quarto, calados. Um enfermeiro chega, trazendo uma bandeja com agulhas. Os sons metálicos perfuram minha pele.
Começam os procedimentos. Eu estou sem referências, sem nome, sem lar. Despida. Aguardo o carcereiro, deitada na cama. Meu irmão e o amigo me olham como se eu fosse para a cadeira elétrica.
O carrasco me pede para deitar na maca. Agora eu não podia sequer tocar o chão. Cadê a psicóloga com palavras de ânimo? Cadê meu sossega-leão para que eu vá dormindo ao centro cirúrgico? Vou de cara limpa e olhos arregalados.
Na despedida, todos começam a chorar. Meu marido quase se torna outro paciente. Não sabem se haverá volta, nem mesmo eu.
Sou colocada na mesa cirúrgica. A primeira agulha, grossa como a que minha avó usa nos bordados, vai direto à mão. Enquanto sou perfurada, conversam, como se eu não estivesse ali. E o anestesista? Apaguem-me logo, pelo amor do Senhor meu Deus!
Preces atendidas. Ele chega. Mais uma agulhada. Pelo menos, vale a pena. Mandam-me contar até dez; não me lembro do três.
Oito horas depois, acordo entubada na UTI. Marido, irmão e amigo me olhando como se eu fosse alienígena. Tentam disfarçar. Dizem que estou ótima. Pode?
Nas primeiras 24 horas, não nos deixam dormir. Cada vez que tento cochilar, alguém me sacode e acordo como se tivesse tido um pesadelo. Nas primeiras horas, quando dormimos, podemos não respirar. Alguém já ouviu falar sobre isso? Deixem-me dormir. Não ligo se vou respirar ou não.
Quarenta e oito horas. As luzes não se apagam. As vozes são como as das feiras livres. Correria constante. Posso ver alguns pacientes, uma visão terrível.
Ainda sem dormir. Resolvem fazer alguns exames no meio da madrugada. Raios X às três horas e tirar sangue às quatro. Agenda lotada. O tal exame é a famosa gasometria. O pior da minha vida. Tiram o sangue da aorta. Cutucando até achar a veia, com a agulha da minha avó. Nem o cateterismo me deixou tão assombrada. Nunca fui tão espetada em toda a minha vida. A cada hora, uma agulhada. Sempre pedem um dedo para furar e mostro sempre o mesmo. Nem preciso dizer qual é.
A cada minuto eles vêm aplicar alguma coisa. Começa minha irritação e isso piora a cada dia. Não é TPM. Para ajudar, entro naqueles dias de mulher. Nem os enfermeiros ouviram falar de pacientes assim em plena UTI. Tinha de ser eu a pioneira! Além dos cateteres, ganho um fraldão. O médico disse que eu ficaria na UTI por 24 horas, mas tenho algumas complicações e passo dos limites. Passadas 48 horas e já estou surtando.
Cadê o psiquiatra? Ninguém para verificar minha saúde mental. Deixa loucos são os outros, eu estou ótima, como se diz na minha família.
Quase 72 horas. Ainda sem dormir. Porque não existe quem durma naquela Faixa de Gaza. Estou fora da realidade, não sei se é dia ou noite, as horas e se chove ou faz sol. Esse seria o papel do psicólogo: posicionar-nos todos os dias para que não percamos as referências. Ainda preciso agüentar um enfermeiro homem trocando minhas fraldas. Já não estou nem aí com mais nada. Como diz minha sogra, estou entregue às baratas. Quem precisa de psicólogo quando já se é um? Péra aí, eu sou a paciente, não vale!
Meu estresse já é visível. Minha tromba mede pelo menos um metro. Estou sem sair da cama, não deixam, nem adianta pedir. Dizem que na UTI não existe chão. Não posso virar de lado. Na cirurgia, serraram meu peito e agora meus ossos precisam colar sozinhos. Sem poder colocar gesso, minha coluna foi para o espaço também.
Tento trabalhar minha mente, dizendo frases como: Eu tô ótima, Logo sairei daqui, Tudo isso é normal, Aqui é apenas um hospital etc. Serve para alguma coisa? Nada. Apelo para Deus. Só Ele pode me salvar.
— Deus, me salve. Deus me tire deste lugar. Deus faça passar todas essas dores. Deus, suma com essas pessoas...
Também não adianta!
A cabeça e as narinas começam a soltar fumaça. Estou com muita falta de ar. Desde o terceiro dia não saio mais do respirador. Os outros pacientes agüentam dez minutos naquilo. Fico viciada. Cigarro? Drogas? Bebidas? Que nada! Viciei no respirador mesmo. O coitado do fisioterapeuta não agüenta mais dizer para largar aquilo, que eu estou bem, não preciso do oxigênio. Mas quem é ele para saber? Eu sim. Sei do que preciso. O monitor marca que está tudo normal, meus batimentos cardíacos, minha respiração. Mesmo assim, não acredito. Aquilo deve estar quebrado. Para mim, estou mesmo é morrendo. Talvez a válvula não estivesse funcionado e, quando mexeram, pioraram. Por isso não faz efeito. Pelo contrário, tem piorado a situação, estou enfartando.
Nada, tudo OK.
Nem sei mais qual dia é. O monitor começa a apitar. Olho e vejo meus batimentos cardíacos diminuindo, de 140 para 120, 100, 90... Penso estar morrendo. Que morte mais gostosa, nem tô sentindo nada. É assim que quero morrer. Apita muito alto. Fecho os olhos e espero a morte. Nem estou ligando mais, tamanho é o sofrimento. Mas o enfermeiro vem correndo, balançando a cabeça:
— Ai! Ai! Ai! A mocinha deve ter soltado algum fio aí, por isso a máquina desligou!
Puxa, não morri, então. Não foi dessa vez!
Na UTI, homens e mulheres ficam juntos. Numa espécie de mesa-redonda. Um olhando para o outro, para ver quem morre primeiro. Podia ter bolsa de apostas. Bem na minha frente, uma senhora sofreu a mesma operação. Não está reagindo, a cada dia fica pior. Até liberaram visitas fora do horário normal. Algo não vai bem e eu assisto a tudo isso. Do meu lado, um senhor com infecção no coração. Os médicos decidem fazer uma drenagem ali mesmo, na minha frente. Vejo um pouco, quase desmaio, mas aquilo para quem já está morrendo não é nada.
Uma senhora chama pela mãe a toda hora. Já tem 80 anos... Imagine a mãe dela! Outro pede para a esposa ir embora, afinal já está vendo o pai e o irmão mortos que vieram buscá-lo. Digo que a UTI é uma festa. Quando os visitantes vão embora, os médicos dançam a noite toda com as enfermeiras, de forró a pagode!
Todos piram aos poucos e ninguém nota.
Que os enfermeiros e os médicos cuidam zelosamente dos pacientes, não tenho dúvida, mas não estão preparados para tratar do lado mental e emocional. Médico não é amigo, é um profissional, ou algo diferente, quem sabe? Quando um aparece de novo, já está com a cruz em punho. Grito:
— Vade retro, Satanás!
Não duvido mais. Ele tem parte com alguma ação lá dos quintos.
As dores são intensas e a falta de ar é tão forte. Peço para o médico me desligar, não suporto mais. Sabe o que ele faz? Dá risada na minha cara. Tenho certeza, ele faz parte de alguma seita.
No quarto dia, preciso me autodiagnosticar e automedicar. Não aparece nem psicólogo, nem psiquiatra. Espero mesmo um psiquiatra para me enviar para um manicômio. Devido à minha grande falta de ar e à taquicardia, noto estar com uma grave crise de pânico. Posso falar em síndrome do pânico, mas não vivo uma síndrome e sim um pânico real. Não possuo mais nome, roupa, referências, nada. Estou totalmente indefesa nas mãos deles.
Explico a situação ao médico e peço um calmante e um antidepressivo. Ele me olha desconfiado, mas cede. Estou tão mal, durmo apenas duas horas. No dia seguinte, pergunta se eu quero outro. Respondo sim, de preferência com uma boa dose de caipirinha, preciso apagar o incêndio. O foco eu trato depois. Passam-se dois dias e começo a melhorar, a ficar lúcida novamente. Saio do meu amigo respirador. Até o fisioterapeuta me dá os parabéns.
Os pacientes que vi quase morrendo estão se recuperando, livres dos tubos de oxigênio e dos aparelhos. Fico feliz, não serei a única a ter alta em breve.
Tenho alta da UTI.
Vem a noite e penso: puxa, hoje vou dormir. Tenho horríveis pesadelos. Mal consigo fechar os olhos e imagino aquele povo da UTI em cima de mim, me agarrando. Para ajudar, o enfermeiro vem me dar remédios às duas horas da madrugada. Não agüento mais. Cada vez que batem à porta, eu pulo da cama.
Devem estar testando meu coração.
Em plena madrugada, uma enfermeira vem apenas se apresentar. Mas quem disse que eu preciso saber o nome dela? De madrugada? Isso é normal? Ou sou eu que ainda está com resquícios de loucura? Só falta me dar o telefone e trocar e-mails. Será que quer ser minha amiga?
Fiquei internada por doze dias. No 12º, choro e recebo alta. Não levo nem dez minutos para arrumar tudo. Saio correndo, nem olho para trás. Estou passada, assustada e hoje carrego 25 centímetros de marca no meu peito.
Agradeço a Deus e a todos os envolvidos. O fim estava próximo, mas eu sobrevivi.
Uma historia real de Adriana Pueblo passada no Hospital Alvorada Moema em 22/08/2008