É uma arte!
E lá veio ela. Se equilibrando em botas marrons de salto alto, o cano colocado por fora de uma calça jeans que fazia força para caber em um corpo dois números maior que a roupa. Um colete de couro, também marrom, que lhe custou quase dois meses de salário e uma blusa preta de malha, completavam o vestuário. O cabelo era assim de uma cor indefinida, entre o preto e o cobre, pintados e ressecados, não se sabia se eram lisos ou crespos, espetavam-se por sobre os ombros. Estavam presos, mas quando se sentou para esperar o ônibus no ponto, soltou, balançando a cabeça de um lado a outro, fazendo um charme. E cabeleira rebelde parecia que saia de um vendaval.
Na boca, um aparelho que tentava corrigir um amontoado de dentes que não cabiam dentro dos lábios. E ficou por ali, tentando parecer indiferente mas querendo ser notada.
Sorriu para a mulher que estava em pé ao seu lado e tentou puxar conversa: "O ônibus está demorando né? Minha amiga foi a pé. Eu estava vindo lá de baixo também, mas não aguentei, estas botas estão me matando. Como hoje é feriado, achei que não teria trânsito e conseguiria pegar um ônibus rápido e vazio. Vã esperança, as avenidas estão todas lotadas" A outra respondeu algo em monossílabas, não estava a fim de conversa. Mas depois mudou de idéia e tentou prestar atenção porque percebeu que ela queria mesmo se comunicar.
O calor infernal contribuía para sentir mais forte o desagradável cheiro que via do bueiro próximo. Uma rajada de vento, levantada pelo movimento dos carros, inundou a todos que estavam ali com um banho de poeira. Não bastasse isso, um caminhão passando ao lado, parece que mirou de propósito, justamente sobre eles, e jogou um jato de fumaça preta produzida pela combustão do óleo diesel.
Um rapaz negro, magrelo e por volta dos vinte anos, pegou caneta, papel e anotou a placa comentando: "Não podemos deixar isso assim. Esse veículo tem que passar por uma revisão. Afinal não somos obrigados a respirar este veneno! Vou anotar a placa e enviar aos órgãos que cuidam da proteção ambiental na cidade, acho que é a Cetesb!". Alguns disseram desanimados que isso não adianta nada. Mas o rapaz retrucou que pelo menos tinha que tentar fazer algo, não podia apenas ficar parado, recebendo esse lixo no corpo já prejudicado por este ar tão seco.
A mulher de botas, que tinha virado o rosto e tentava não respirar como todos ali, depois de baixada a poeira e dissipado a fumaça, conseguiu proferir estas pérolas: "É por isso que digo que ser pobre é uma arte, mas que eu prefiro deixar à parte!"