DE COMO OS MAIS VELHOS SE TORNAM CRIANÇAS


     Recentemente passei por Cachoeira, cidade histórica da Bahia. Ante a estreita e centenária ponte D. Pedro II, aguardava paciente a passagem de um trem para poder seguir viagem até Cruz das Almas.  Enquanto esperava a liberação da ponte, olhava para o Convento do Carmo, lembrando-me da última visita a essa cidade, em companhia de minha mãe já falecida. Não pude conter o riso quando me veio à memória a peça que a velhinha me pregou naquela oportunidade. À época com mais de 90 anos, Dite como era tratada na intimidade, pediu-me para levá-la em Conceição da Feira, nossa cidade natal. Era o seu passeio preferido. Aproveitava para visitar parentes e velhos amigos, enfim matar saudade da terrinha, como dizia. Na volta,  terminei entrando em  Cachoeira para rever alguns pontos turísiticos. Foi assim que fomos parar no Museu das Alfaias, onde passei o maior vexame. 

     Vou contar como aconteceu. Mas antes é preciso retroceder no tempo para que o leitor entenda o melhor dessa comédia que, na verdade, teve início décadas atrás.     

     Estamos em 1950, na cidade de Conceição da Feira onde nasci. Aos seis anos, eu brincava na porta da rua quando chega Lourdinha, uma amiga da mamãe, para lhe fazer uma visita. Deixo de lado a brincadeira, entro em casa saltitante para anunciar a sua chegada. 

     Minha mãe a recebe sorridente e a convida para sentar-se. Começam a conversar animadamente e lhe é servido um cafezinho.  Eu curioso como toda criança, entro e saio da sala querendo chamar a atenção. De repente me aproximo da visita e procurando ser agradável, disparo:

     Lourdinha, eu ganhei um livro de estória muito bonito. Ele tem uma coruja que minha mãe acha parecida com você! Disse que é a sua cara! Quer ver?

     Minha mãe coitada, morta de vergonha só tinha ânimo para dizer:

     -Vai lá pra dentro menino, deixa de bobagem, onde já se viu criança se meter em conversa de adulto? Quer apanhar? Vai pro seu quarto!

     - Não se preocupe, D. Edith, isso é coisa de criança. Não vou me aborrecer, deixa ele... 

     Eu terminei saindo da sala, mas para ir pegar o tal livro. Voltei incontinênti folheando as suas páginas, até encontrar a foto da coruja de óculos, exibindo-a como um troféu. Colocando o livro aberto no colo da moça, insisti em mostrar-lhe a figura, sempre repetindo: olha aqui, ó, ela é toda você, não é mesmo mamãe?

     A resposta foi um puxão de orelha, sendo levado para o quarto onde fiquei de castigo. Não sei como terminou a visita. Foi um tremendo mal estar. Só sei que quase cinquenta anos depois a minha velha, com a mesma inocência de uma criança de cinco anos, me daria o troco.

     Estamos de novo em Cachoeira. Depois de levar a mamãe para rever alguns locais de sua predileção e os poucos amigos remanescentes,  fomos enfim visitar o Museu das Alfaias. Ele fica na Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, uma jóia da arquitetura colonial,
contendo um rico acervo de imagens sacras, peças de ouro e prata e paramentos religiosos.

     Logo na entrada do Museu aguardava-nos uma surpresa. A pessoa que atendia na portaria era uma senhora logo reconhecida por minha mãe:

    - Lourdinha, quanto tempo! Jamais pensei encontrá-la por aqui...  

     E  pegando-me pelo braço, disparou sorridente:

     -Sabe quem é esse aqui? É o meu filho Cyro, aquele que quando era pequeno me matou de vergonha naquela vez que você me visitou. Se lembra, quando lhe mostrou o livro de estória dizendo que a coruja se parecia com você?

      Desta vez era eu que tentava desconversar ante a insistência da mamãe em relembrar os detalhes daquele episódio insólito. E ela: oxente, que besteira, Lourdinha não vai reparar nisso não, e abraçava a amiga. 

     Já se passava meio século e o mal-estar se repetia, desta feita protagonizado por uma criança de 93 anos...

     Revendo essas lembranças fica mais fácil entender o dito popular segundo o qual nos tornamos crianças à medida que envelhecemos. Invertem-se os papéis: as nossas debilidades físicas vão exigir maior assistência por parte dos filhos. Mais que isso, voltam a aflorar a espontaneidade, a inocência e a sinceridade. Tudo livre de convenções, maldades e hipocrisias, como só as crianças pequenas sabem se comportar.