Adjacente Abismo Entre os Supostos Opostos

Olha só como as coisas são engraçadas.

Ele acorda, resmunga, levanta, come e toma banho.

Ela acorda, resmunga, levanta e toma banho ouvindo música.

Ele escolhe o tênis que não está furado na sola e que combina com qualquer roupa.

Ela foi dormir com vontade de usar AQUELA saia, o que significa usar, também, AQUELE salto.

Ele mora na rua 6 e ela mora na rua 7. A parede de seus quartos encontram-se - mas eles não sabem do mero detalhe.

E eles, às vezes, encontram-se no ponto de ônibus. E pegam a mesma lotação até o Metrô.

E ela sempre está falando no celular enquanto ele tem o mesmo número de um pesqueiro, de uma mecânica e de um açougue e recebe SMS por engano.

E ela atrai todos os olhares com sua cabeleira loura e sua saia de cintura alta, que revela ótimas e torneadas coxas.

E já tem quatro anos que ele usa aquela mesma calça jeans rasgada no joelho direito e três anos que usa aquela camiseta virada do avesso.

E ela olha pra ele e pensa "nossa, esse precisa de uma mulher para lhe dispensar cuidados".

E ele olha pra ela e pensa "essa filha da puta acordou hoje e seu primeiro pensamento foi: 'hoje eu mato um do coração'".

E na lotação dividem o mesmo banco.

Ela cruza as pernas, a saia sobe e revela algumas celulites na coxa.

Ele tenta a todo custo se concentrar no livro que abriu, mas depois da décima nona leitura do mesmo parágrafo acaba desistindo; aquelas pernas, aquelas panturrilhas são infinitamente mais atraentes do que um monte de palavras enfileiradas.

Ela sempre pendurada no celular, enquanto ele cochila ouvindo "O Mistério", do Lobão.

A lotação chega no Metrô e é ela quem acorda ele: "Ei, chegamos" e sorri e ele se sente mais babaca do que o normal.

Desembarcam e ele pára pra amarrar o cadarço sujo e estropiado enquanto ela segue andando em direção à escada rolante.

Há qualquer coisa de mágico, sublime, inefável, inescrutável e encantador no caminhar de uma mulher que está montada num salto alto.

Ele foi andando atrás dela, mas não olhando seu traseiro malhado, com aquela calcinha ínfima formando um triângulo pouco abaixo do cóccix; não, foi andando tentando desvendar o quê exatamente naqueles passos cautelosos - um pé após o outro, o esquerdo sendo a Leveza e o direito sendo a Sensualidade - é tão hipnotizante sob o arrimo de um salto alto.

Apressa o passo e passa por ela e olha pra trás. Casa dos trinta, rosto maquiado na medida certa, combinando com os tons da roupa, com a cor do cabelo, salientando as maçãs do rosto e a cor dos olhos. Tudo em perfeita harmonia! A saia tem um zíper na parte da frente, provocando, suscitando miríades de pensamentos pecaminosos nos homens, em todos os homens, que param, que deixam de se concentrar em seus afazeres para eternizar com a fotografia da retina aquele momento em que ela deposita seu meio cento de quilos e faz o salto alto cantar músicas para seus ouvidos e delineia os músculos de sua panturrilha, mexe com seus quadris, mesmerizando encanadores, padeiros, advogados e até mesmo enfermeiras, cozinheiras e publicitárias.

Ela parece não perceber o rebuliço que causa quando passa. Pára do lado esquerdo da escada rolante e ninguém se importa - não sendo ela a pessoa que barra os mais apressados.

E eles entram no mesmo vagão.

E ela olha pra ele e dá um pequeno sorriso e pensa "pobre rapaz, ficaria melhor um pouco mais arrumadinho... E parece meio perturbado, alheio a tudo e ao mesmo tempo observando tudo. Deve ser um idiota."

E ele não sabe o que fazer com aquele pequeno sorriso e fica vermelho e capta algo de estranho, estranho e familiar ao mesmo tempo, no olhar dela.

E ela imagina como seria o mundo se todos os homens fossem iguais ao seu colunista predileto, assim que abre a revista e começa a devorar as palavras dele.

E ele tem um estalo para o seu próximo texto assim que vê sua maravilhosa vizinha devorando com avidez a coluna daquela revista de comportamento que ele escreve sob um pseudônimo.

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Por falar em Lobão, vai rolar show dele na Chopperia do Sesc Pompéia nos dias 12 e 13 - ou sexta e sábado, como quiserem. Quem tá dentro?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/11/2010
Reeditado em 10/11/2010
Código do texto: T2607762
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