Roberto na tocaia
ROBERTO NA TOCAIA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 10.11.10)
Videira, SC - A escola pública, à noite, com dificuldade por causa do trabalho de dia pra ajudar no sustento de casa e pra poder ir às aulas. Um trabalho incompleto durante a semana que precisa pagar no sábado, todos os sábados, até as duas da tarde. Ajudante de cozinha: o serviço pesado na pizzaria e a vontade muitas vezes de largar tudo e se mandar pra longe. Coisa de adolescente. E de gente.
Uma teimosia, no entanto, de continuar a viver, de brigar, lutar e resistir na esperança de algo que Roberto não consegue definir. Talvez só a glória de sobreviver, mas a ansiedade por algo diferente, por um mundo outro, nem melhor nem pior, mas outro, diverso, fascinante, perigoso, desconhecido. O delírio, talvez, de ser vários ao mesmo tempo, de viver vidas múltiplas em paralelo, de sair um pouco de si e esconder-se sob outros nomes em outros lugares, em outras aventuras com outras mulheres, maravilhosas e insinuantes, fantásticas e misteriosas, com outros bandidos, com grandes amigos - e voltar então para o seu mundo e a sua vida muito mais rico, inquieto e cheio de perguntas inconvenientes.
Livros, falou a professora em sala de aula, muitos e muitos livros vocês poderão ver, tantos livros novinhos em folha, juntos, como vocês jamais imaginaram na vida que pudessem existir. A primeira feira do livro de Videira, ela disse, e a diretora suspendeu as aulas na sexta-feira pra ninguém ter desculpa de não ir.
Roberto foi. No auditório, um sujeito começou a falar. Um cara do Paraná. Um deputado federal. Um indivíduo de nome Marcelo Almeida. O deputado dos livros, falaram. E ele falou de livros. Só de livros. Contou as histórias que os livros contam. E foi espalhando os livros pela mesa: oito, dez, doze livros, não parava mais. Livros que li recentemente, falou, e dos quais gostei muito. Outros mundos: diversos, fascinantes, perigosos e desconhecidos. Outras vidas, outros nomes, outros lugares, mulheres sedutoras, grandes bandidos. No fim, deixou tudo, as histórias que contou e os livros que leu, para a Biblioteca Municipal Euclides da Cunha.
Fascinado com a estonteante abertura de horizontes, Roberto tomou coragem e pediu um autógrafo no caderno pro amigão Marcelo. Conseguiu - o que lhe significou o passaporte para frequentar a biblioteca e começar a explorar os caminhos que os livros guardam sem segredo, posto que basta lê-los.
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"Convém que nos situemos no tempo. As três conferências de [Antonio] Callado para auditórios no exterior foram feitas no apagar das velas da escuridão do governo do general-presidente Emílio Garrastazu Médici - de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974 -, que rolou entre a demencial e crescente violência da tortura, no apogeu dos Doi-Codis, dos sumiços de presos e dos cadáveres, com o silêncio garantido pela censura, estúpida e torva, estimulada pela impunidade e a cobertura fardada."
Villas-Bôas Corrêa na apresentação de "Censura e Outros Problemas dos Escritores Latino-Americanos", de Antonio Callado.
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Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.