Aquele que espera
(Baseado em verdades e mentiras)
Acho engraçado o fato de que algumas de minhas histórias de vida mais marcantes envolvam o ato de esperar pelo ônibus. Penso às vezes que se deve à raridade de fazê-lo, já que eu, como já disse antes, não gosto de transportes públicos, não sinto vontade de possuir um automóvel e prefiro andar aos meus destinos para apreciar mais agradavelmente a paisagem. No entanto, um ponto de ônibus é um lugar onde se pode encontrar, quase sempre, um sortimento deveras colorido – to say the least – de pessoas às quais estudar, e é estranho pensar em como, apesar destas pessoas viverem todas na mesma cidade, muito provavelmente jamais tornarei a reencontrá-las nas ruas; elas se esquecerão de mim, e eu, uma hora ou outra, também me esquecerei de algumas. Há, porém, uma pessoa e uma história envolvendo um ônibus das quais não tenho como me esquecer.
Ia eu tomar o ônibus, retornando para casa depois de um belo passeio pela cidade – havia recém-gasto meu orçamento em livros, e nada deixava-me mais feliz, quando de repente enxerguei a silhueta de uma pessoa que julgava que jamais haveria de ver novamente esperando pelo ônibus também.
Era um antigo amigo dos tempos do colegial; uma das poucas pessoas que conseguia tornar minha vida mais suportável durante aqueles três longos e detestáveis anos. Costumávamos ser bem íntimos e nossa amizade perdurou até o fim da escola, mas acabáramos tendo uma discussão por algum motivo banal (tão banal que até esqueci-me, lamentavelmente) e não nos falávamos havia alguns anos. Meu rosto corou de vergonha, e escondi-me atrás de um muro; torcendo para que ele não me houvesse visto, comecei a refletir sobre como agir.
Por anos tentei contatá-lo, esperando poder encerrar aquela briga, afinal era um amigo muito querido – mas ele não devia sentir o mesmo, já que nunca entrara em contato comigo. E se fosse recebido com hostilidade? Decerto passaria vergonha na rua. Mas também pensei que ele não me contatara meramente por estar ocupado, tal como eu também andava ultimamente; ossos do ofício da vida adulta…! Havia projetado um pequeno roteiro em minha mente caso nos reencontrássemos – sonhei incansavelmente com o dia em que o poria em prática. Nos cumprimentaríamos, falaríamos sobre banalidades e, então, ambos pediríamos desculpas ao mesmo tempo, reatando nossa amizade com um aperto de mão. Mas ele não tinha como cumprir meu roteiro…!
E, assim, continuei a buscar em meu interior por argumentos que facilitassem minha decisão – mas cada um era sempre refutado por um “mas”. Após uma longa série de “mas”, que causaria tédio não só a mim como ao leitor se a listasse aqui, a coragem venceu; estava mais do que na hora de (ao menos tentar) colocar um ponto final naquela história. Deixei meu esconderijo (já devia ter perdido meu ônibus há muito) e segui decidido para falar com meu ex-amigo – mas…
Seu ônibus chegou e ele embarcou. Com a adrenalina ainda bombeando por meu corpo, corri atrás do veículo, já tendo perdido tempo o suficiente. Meu amigo se sentara na janela, o que felizmente o permitiria me ver (e quem sabe ouvir) com mais facilidade, e gritei seu nome: “J…!” Ele olhou-me de volta, aparentando surpreso, e continuei a correr e a gritar: “Sinto muito! Fui um idiota! Me perdoe!”, entre outras coisas do tipo. Ele colocou a cabeça para fora da janela, e disse-me algo que não pude escutar muito bem devido ao barulho do trânsito. Cansado de correr, precisei sentar-me – no chão mesmo – para me reestabelecer; o ônibus e as feições de meu amigo foram ficando cada vez mais distantes, e até hoje não sei se o que gritou-me ele da janela foi que aceitava meu perdão ou alguma profanidade, indicando que jamais voltaríamos a ser como antes. Confio, porém, que um dia haverei de sanar esta dúvida, sem que nenhum “mas” me atrapalhe – ou ao menos que esta crônica lhe caia em mãos.
Espero por este dia tal como alguém a esperar por um ônibus…
(São Carlos, 29 de agosto de 2022)