Crônica de domingo

Crônica de domingo

Domingo é um dia esquisito. À sua espera não corresponde, quase nunca, ao otimismo da realização das expectativas. Chegado o domingo e o seu longo rosário de horas, o que fazer? Sair para comprar o jornal, se abalar para o supermercado em busca de víveres para casa, pendurar na parede um quadro novo na parede, ir num almoço de aniversário de um parente (oh-oh!), dar uma geral no carro, ir ao shopping pagar as prestações vencidas... Não, ao domingo não foram destinados momentos e oportunidades para as coisas épicas. Tudo parece amortecer o brilho ou o efeito, diante do diálogo mortiço que ocorre entre os minutos que se sucedem preguiçosos.

Um amigo liga de longe, dizendo de saudades, mas cadê coragem para atravessar a cidade e, encontrá-lo para colocar a conversa em dia? Os adventistas, de pastinhas executivas pretas numa das mãos, tocam a campainha e fincam pé diante do portão e, só depois do latido insistente das cadelas e, que se vão. No quintal da casa, o chão está pontuado do vermelho dos cajus - que estão menores depois de trinta dias de "águas" e, pedem uma limpeza urgente. Como recompensa, descubro a pitangueira cheia de frutos já roxos, na horinha de serem devorados - eu, antes dos pardais e periquitos.

Não demora e saio à rua para comprar o jornal de domingo - sempre mais gordinho e, com coisas interessantes e, variadas para se ver. Dizem que, em breves dias, os jornais impressos vão se acabar, pois os Ipads da vida vão terminar o serviço que a Internet começou. E eu temo este dia, menos pela qualidade pífia do jornalismo encontrado nos portais e sites da Internet, onde os jornalistas, em geral fazem de fatos aquilo que alguém escreveu e, publicou antes, do que pela perda deste meu arraigado e prazeroso costume de sair de casa com o único compromisso de comprar os jornais e alguma revista semanal, para ler em casa, numa ordem muito aleatória, onde até os vistosos cadernos de anúncio de móveis e eletrodomésticos me roubam a atenção.

A revista semanal de que gosto ainda não chegou. E os jornais não trazem nada de muito interessante, na capa. "Benza Deus!", penso eu, que os últimos meses têm sido de manchetes locais e nacionais impressionantes, em letras garrafais - para usar um termo da época em que não se falava em "fonte". Não sei porque chamam o "tipo" ou "modelo" de letra de "fonte". E suponho, por outro lado, que não exista muita gente que se recorde do que seja "tipo".

Comprei apenas um jornal local, bem gordinho, pois além dos cadernos normais do domingão, está cheio de cadernos de ofertas, já que, para o comércio, o Natal começa em novembro. Em casa, sento-me à mesa da varanda e, examino a capa. Formação de equipe de governo, corrida de fórmula 1, futebol e, coisas assim. No canto direito, uma chamada para uma série de matérias relativas ao centenário da morte do grande Liev Tolstói. "Taí!", penso e, separo o caderno de cultura, para ler depois.

No primeiro caderno, notícia do massacre de cristãos, na verdade, católicos, no Iraque, sob patrocínio da Al Qaeda - organização que prima pelo radicalismo político, muitas vezes travestido de radicalismo religioso, pela estratégia e, pela incrível covardia. Estão perseguindo e, matando cristãos em muitos lugares do mundo. Mas, ninguém tem coragem de ir muito fundo no assunto, nem de tratar a questão de uma forma mais sistêmica. Ora, num tempo de patrulhas políticas, ideológicas (na América Latina, é só o que dá...) e, do "politicamente correto", o silêncio é menos covardia, do que método. De repente me vem à mente uma canção do musical "Hair": "...Age of aquarius/ age of aquarius/ age of aquarius...". Muito cínico. Mas, é como reago, quanto a este tempo e, estas situações...

Lá pelo fim do primeiro caderno, uma outra notícia me chama à atenção, embora suspeite que ela tenha sido objeto de uma operação ctrl+c+save+ctrl+p: "cientistas argentinos e brasileiros obtém impressionantes imagens de alta resolução da crosta solar". Resolvo ler. E depois que descrevem o que os cientistas deduzem das fotos, a fala de um deles é destacada, dizendo que o sol anda num momento de estranha calmaria, já que deveria estar entrando em mais um ciclo de intensa atividade, o que ocorre de onze em onze anos.

E o tal cientista ainda afirma que, por causa desse comportamento um tanto inesperado, a terra pode entrar num ciclo de mini glaciação, como ocorreu no século XVII. Pois, é: sei que ninguém vai dar crédito ao cientista em questão, já que seu raciocínio não está afinado com o dos ecologistas, mesmo diante da invocação de um acontecimento geológico recente e documentado.

De qualquer forma, para tristeza de muitos, o mundo não vai se acabar. E teremos que nos levantar todos os dias para tirar o sal da terra e viver do suor do nosso rosto, se formos competentes e, orgulhosos o bastante. Do contrário, a coisa é muito fácil. Epa! Deixa isto pra lá...

Entrei no caderno de cultura. E então, encontro na crônica do poeta Gabriel Nascente (um senhor vate que, prestem atenção, vive da poesia - da poesia de sua lavra!), a notícia de que seu amado periquito Loló, companheiro "de redação", por assim dizer, morreu. Todo mundo que sabe das coisas do Nascente ou, pelo menos leu suas crônicas - ou a crônicas de escritores amigos, sabem da história do alegre e carismático Loló. De repente, recordo-me de minha avó Francelina, que cumpriu um verdadeiro luto por ocasião da morte de uma bela e faladeira arara que tinha, a Cota. E me vejo comovido com o fato e, me solidarizando com a perda do poeta.

Na página de economia, a informação de que o Brasil é o quarto do mundo, em venda de veículos. E me pergunto: noves fora, a movimentação e econômica (criação de empregos, envolvida), me pergunto: é o caso de nos ufanar? As ruas estão entupidas de veículos e, o trânsito vai se tornando um ambiente inviável, violento e insuportável. Por que nos ufanar? Mas, de repente lembro-me que, honestamente, sou parte do problema, pois não sou capaz de trocar o carrinho pelo horrendo transporte público oferecido aos goianienses (ah, se tivesse pelo menos um jornalista e um meio de comunicação de coragem para escarafunchar a história da licitação de caráter nacional ocorrida pouco tempo atrás, onde só compareceram empresas locais!...).

Não dá. Volto ao caderno de cultura. E entro, enfim, nas matérias que tratam do centenário da morte de Liev Tolstói, que, até os anos 80, seus livros eram públicos no Brasil com seu nome traduzido para o português, "Leão".

Fazem hoje cem anos que Tolstói, um dos dois maiores escritores russos, autor de uma estupenda e venerada bibliografia, nas quais se incluem o monumental "Guerra e Paz (que merece uma refilmagem à altura, épica e dividida em pelo menos três filmes, como anda em moda)", "Anna Karenina - que também, espero, levem novamente para as telas numa produção à altura)" e, "A Morte de Vladimir Ilyich", que, a despeito da ambientação regional, tratam dentro de uma concepção "realista", de temas e dramas humanos e sociais de natureza universal. Da mesma forma, os seus personagens, cuja humanidade e verossimilhança estão estampadas em suas personalidades contraditórias, vacilantes ou idiossincráticas.

Engraçado que, a data deveria ter merecido maior atenção no país - não poderia se esperar menos do que palestras, simpósios e, debates em torno da incrível obra, da vida movimentada e, agitada personalidade do consagrado escritor russo. Mas... quase nada! Pelo que sei, de evento, só relançamento de dois livros do escritor, traduzidos diretamente do russo. É muito pouco. O governo que se mete em muito assunto onde não é chamado, poderia ter tomado a iniciativa. Mas... Nada!

Ao lado de uma caixa de texto, colocaram uma foto do mestre. Lá está ele, com uma camisa típica dos agricultores russos e, seu olhar basso e, a barbaça hirsuta. Ele era de outro tempo. E a camisa e, a barbaça, não pode ser consideradas como algo proto midiático. Mas, certamente tem muito de nacionalista e, de contestação à ordem czarista vigente.

(Me lembro bem dos trajes típicos usados pelos agricultores da Rússia, por conta da lembrança dos "russos" de uma comunidade localizada em Rio Verde - GO, que, tempos atrás, em trajes típicos da terra ancestral, vinham a Goiânia depois das colheitas, para comprar à vista, veículos, máquinas e, implementos agrícolas, fazendo a festa dos comerciantes localizados na Avenida Pio XII, no bairro Cidade Jardim, região onde trabalho).

Lembrando deste mestre da literatura, acabou vindo à o tempo em que me mudei para Goiânia e, fui estudar na UCG - hoje, PUC-GO, e por conta da política estudantil, havia um movimento de culto à cultura do que se dizia ser o "mundo soviétiéco". Muita gente dizia inclusive, não me lembro mais porque, que, o português tinha afinidade com a língua russa e, haviam até algumas escolas especializadas que ofereciam o aprendizado de russo na cidade - não é que muita gente da esquerda ainda alimentava o sonho de estudar ou fazer pós-graduação na URSS, à custa de indicação dos partidos e militantes comunistas?

E me vem à lembrança que tenho até hoje na minha estante, um daqueles livros de disseminação das ideias de Marx, Karl Marx, impressos na URSS (encadernação costurada e, um cheiro de tinta horrível) que eram distribuídos à boca miúda, nas universidades, naqueles dias em que ia se anunciando o fim da ditadura militar e, muita gente não imaginava a queda do Muro de Berlim, por aqui. Quem me deu, foi um colega de trabalho que diz ser socialista até hoje. Não consegui ler mais do que algumas páginas, porque notei logo que não passava de um pastiche das contestáveis teses marxistas-leninistas. Mas, o engraçado é que, por se tratar de um produto exótico que testemunha um tempo passado e, talvez por consideração a quem o deu, nunca me livrei do tal opúsculo.

Mas, nesta altura, me obrigo a confessar que fujo do que segue: evidentemente, não tenho competência para criticar a obra de Liev Tolstói. Mas, posso dizer que tudo o que se espera de uma grande obra literária está lá - Profundidade e densidade na exploração de tema, maestria no desenvolvimento do roteiro da história, magnífica exploração do universo retratado e da personalidade das personagens, o que pode ser conferido na novela "A morte de Ivan Ilyich", por exemplo.

Chico Buarque de Hollanda tem o conhecido talento por retratar as relações conjugais pela ótica feminina. Mas, quem está familiarizado com a obra de Tolstói, sabe que neste quesito ele é difícil de ser superado. É o que pode-se deduzir da leitura de Anna Karenina, como bem diz uma colega, que é leitora contumaz de bons livros.

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A tarde cai, silenciosa e calma - o que indica que ninguém da vizinhança fez aniversário natalício ou de casamento, noivou ou casou, este fim de semana. De movimento, só mesmo os frequentadores da pista de cooper ou, o pessoal da Igreja Cristã Evangélica, que vai subindo a rua em suas roupas sóbrias (os homens de terno e gravata e, as mulheres, vestidos compridos). Alguns deles levam nas mãos os instrumentos musicais que tocam, durante o culto.

Nada de extraordinário aconteceu. Nenhum evento humano, terrestre, cósmico ou divino parece ameaçar a conclusão pacífica deste dia tão típico e manso de domingo.

Boa semana a todos!