Inusitada viagem de ônibus
Sexta-feira. Última aula da tarde. Doce sensação do dever semanal cumprido. Depois do agradável “five o’ clock tea” que minha aluna favorita, Aglaê, me acostumou no final de cada aula, dirigi-me à rua Visconde de Pirajá a fim de pegar o ônibus que me traria de regresso ao sossego e conforto do lar.
Ao longo da viagem o ônibus foi lotando, aliás, não seria normal se assim não fosse. Por sorte consegui um lugar sentada, apesar de não ser do lado da janela como eu gosto, pois ali eu posso apreciar melhor a paisagem. Sensivelmente a meio do percurso, uma moça de exageradas proporções físicas, sentou-me a meu lado, ocupando o lugar que normalmente é destinado a cada passageiro e ainda parte do meu.
Um pouco adiante, estando o sinal fechado, o ônibus obrigatoriamente parou. No exterior, um aglomerado de pessoas em volta de um canal – um daqueles canais que pensamos serem destinados a águas fluviais, mas que, afinal, são verdadeiros esgotos a céu aberto - despertou minha atenção. A curiosidade é um bichinho ruim. Precisei esticar bem o pescoço para conseguir enxergar o que se passava lá fora... olhei, voltei a olhar, e não queria acreditar naquilo que meus olhos tinham visto: no canal, flutuando sobre aquele líquido nauseabundo estava o corpo de um homem. Braços e pernas abertos, cabeça voltada para baixo... inevitavelmente, já sem vida. Carros de polícia e bombeiro se aproximavam, o que dificultava a fluidez do trânsito. Eu não queria olhar de novo. Senti-me mal. Muito mal. Fechei meus olhos não querendo acreditar. Pensei como poderia aquele homem ter caído no canal. Teria sido propositadamente? Teria sido assaltado, mal tratado e empurrado, caindo e se afogando?
Senti que as as forças me faltavam. Minhas pernas tremiam, toda eu tremia. Nunca, em 44 anos de vida presenciei algo semelhante.
Minutos depois o ônibus continuou viagem. Com a deslocação do ar, a brisa entrou através das janelas, refrescou meu rosto, respirei profundamente e pude sentir-me melhor.
Abri os olhos, pude verificar que no ônibus estavam, realmente, demasiadas pessoas. Senti-me feliz pelo fato de poder viajar sentada, apesar de tudo.
Do meu lado esquerdo, a roliça jovem dormia. Do meu lado direito, em pé no corredor, quase encostando no meu braço, estava alguém muito bem acordado, até demais!
Há cerca de um ano atrás, comecei a sentir dores no cotovelo direito: tendinite. Cremes, pomadas, e a danadinha teimava em não largar meu braço. Recorri a um ortopedista pelo meu plano de saúde que, após exames efetuados, me disse tratar-se já de uma epicondilite lateral, que é uma inflamação dos tendões do cotovelo. Sessões de fisioterapia, consultas médicas, remédios e a dor sempre presente, até hoje.
Mas voltando à viagem...
Em ônibus lotados, há sempre um ou outro elemento mal intencionado que se aproveita da situação. A meu lado, bem em cima de meu braço direito, aquele par de pernas insistia em tirar partido da situação. Senti-me revoltada quando olhei para o rosto da pessoa e pude observar um ligeiro e amarelo sorriso. Não fiz caso. Continuei sentada, bem apertada entre a minha companheira do lado esquerdo e as pernas do senhor passageiro.
A certa altura senti que, propositadamente, fez um certo movimento em que tocou com “umas certas partes” de seu corpo no meu braço e assim permaneceu. Levantei o braço, pensando que bastaria um impulso meu e o atingiria em cheio “na mouche”, não fosse a danadinha da minha epicondilite... sabia que iria me machucar. Apesar da situação ser, para mim, muito desagradável, não era motivo para fazer um escandalo. Não foi essa a educação que meus pais me deram. Eles me ensinaram que a diplomacia é uma arte. Também me ensinaram a respeitar as pessoas. Pensei que deveria respeitar sim, o sossego da viagem dos restantes passageiros, mas em relação aquele senhor, minha habitual calma havia chegado ao limite.
Olhei para ele, diretamente em seus olhos e consegui dizer, em alto e bom som:
- Senhor, vejo que sua calça jeans está gostando demais do meu braço. Saiba que meu braço não está gostando nem um pouco. Por gentileza, queira se desviar.
Novamente aquele sorrisinho malandro e amarelo. Senti que minhas palavras tiveram um efeito contrário ao que eu desejaria. Um certo volume começou a fazer-se notar por baixo da calça jeans... Meu cotovelo pedia-me para ser usado. Instintivamente, levantei o braço, com um violento gesto dei uma forte cotovelada no abusado homem, que não merece ser assim chamado, mas de outros nomes feios que não tenho coragem de aqui escrever. Várias pessoas o chamaram de "babaca", "ignorante", "abusado", etc.
Contorcendo-se de dor, pediu licença aos restantes passageiros que se encontravam no corredor do ônibus e saiu. Mas não sem antes ter ouvido poucas e boas das pessoas que assistiram.
Mais uma vez senti que meu corpo tremia. Meu sentimento era agora, de raiva, de revolta contra esse tipo de homens, homens com h minúsculo, demasiado minúsculo! São homens desse gênero que desclassificam a classe masculina.
Inusitada viagem! Novamente fechei os olhos. Meu cotovelo doía, as dores características da epicondilite haviam voltado. Não parava de pensar naquele homem. Não no safado que encostara no meu braço, mas sim no outro que jazia, morto, na água suja do canal...
Ana Flor do Lácio (07/11/2010)