REOUVINDO AUGUSTO CALHEIROS*

A limpidez dos fonemas salta – mais que argêntea – aos meus ouvidos. Pororoca suave, orquestração unívoca e azeitada: uma límpida correnteza de acordes. Adjetivação, assim, farta e abundante, só para quem a mereça. Causa mal nenhum a ninguém. Reouvindo o cantar de Augusto Calheiros, meio como que sob um solfejar de alcova, macio como veludo, boniteza de voz antiga, mas nem tanto tão antiga voz. A boa voz é e será sempre um canto novo.

Cada sílaba, cada segmento frásico, cada verso na voz de Augusto Calheiros e sua melodia insofismável, algo apaixonado e apaixonante, tudo uma festa de sonidos diáfanos e uma lindeza de harmonia.

Aqui e acolá, parco de assiduidade, ingiro uma cervejinha escorado no tosco balcão, sábio balcão de piadas, chistes curiosos e anedotas de salão do Seu Adérito, este um de barzinho montado bem no pórtico de um hospital, num bem-ali lá casa. Rabos de saia, às pampas, meninas metidas no branco impecável; elas muito fagueiras, indo e vindo. E meu olho, vez em quando, lá, afagando o branco das diligentes moças. Mas somente aos domingos, que todo dia não é dia santificado, nem de mordomias.

Com que paz, ouvido colado na vitrola (sic) de Seu Adérito, eu escuto o repertório do nordestino de Alagoas que morreu feito um indigente, anônimo que nem cão vira-lata. Sujeitos assim, como ele e Luiz Gonzaga, para que diabo eles morrem?

Seu Adérito, em meio à audição das modinhas e ao menor engasgo do LP anoso, com voz de Bossa Nova, vai cantarolando pra gente, com timbre e entoação muito a propósito. Canta porque sabe, à maneira do Augusto Calheiros. É entoado à beça e tira sons quase sem abrir a boca, baixinho, ver o João Gilberto. Agrada aos íntimos e a quem ainda for ouvi-lo, num amanhã. Mas ora se não agradará! O meu amigo do botequim é um águia na interpretação do Calheiros e do Orlando Silva. E, sem falsear a verdade, estes dois seresteiros sempre me botam comovido. Dois gajos antigos de que muito gosto.

Apenas três discos do genial cantor – e ainda LPs, aqueles bolachões dos muito velhos – possui o meu venerável amigo. Peças que ele tem com religiosidade, algo de estimação. E não é qualquer freguês que desfruta da audição de tais discos, não. Modéstia à parte, eu sou um dos raros eleitos para ouvi-los e reouvi-los.

Se todos, aí, querem mesmo que faça a confidência, afora aqueles instantes de enlevo musical, lá dele, quando solfeja canções, é um filósofo de sabedoria empírica. Sem dúvida, é um pensador de marca maior. Bicho escovado e passado na casca do alho. Bom, não, excelente papo, entendido das artes. Sensibilidade finíssima, cuja preferência, no caso do Calheiros, recai sobre estas faixas de um dos LPs: “Bela”, “Dúvida” e “Fatal desilusão”. Verdadeiramente obras-primas do cancioneiro nacional. Lamento informar: gente nova, do “hip hop”, nunca ouviu tais letras, até porque cretinamente as rádios não tocam.

Por mim, no meu bom gosto confesso e imodesto, munido da minha sacrossanta ignorância, só sei cantarolar aqueles versinhos maviosos que os tímpanos não largam de escutar, fazendo festival, justo os da faixa “Casa desmoronada”: “Vocês ‘tão vendo / aquela casa desmoronada, / lá no alto da chapada, / dentro daquele sertão...?” E me lembro também destes: “Cai a tarde, tristonha e serena, / em macio e suave langor, / despertando no meu coração / a saudade do primeiro amor”, da música “Ave-Maria”.

Mas, volvendo às falas iniciais, ou seja, à boa música popular brasileira, atualmente tão às favas, com Calheiros à tona do meu peixe, digo sem pestanejar que o meu amigo Seu Adérito, filósofo de cepa, precisa abrilhantar umas das noitadas fortalezenses do gostoso seresteiro “Ontem, hoje e sempre”, do velho, renomado e sempre atual Augusto Borges, na TVC, interpretando partituras perenes do gênio esquecido, o nosso canoro e inimitável “Patativa do Norte”.

E, por favor, já que falei da afinada ave, não confundam com o outro gênio, o poeta “Patativa do Assaré”. Seu Adérito, que não é cantor de profissão, mas canta como ninguém, igualzinho a este manco de voz que eu sou, e que não canto nem no banheiro, gosta de Calheiros e leva jeito pacas na boa dicção musical, aquela dos tempos do onça, a moeda.

Janeiro de 1994.

Fort., 05/11/2010.

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(*) Crônica antiga, publicada no O POVO,

jornal de Fortaleza, aqui reproduzida por

ainda julgá-la atual. Todos ouvem ainda o

o axé, música dita sertaneja, nada de sam-

ba, que considero o ritmo nacional, e muita

baboseira estrangeira. E, pior, quase 100%

lá dos ianques, também invasores culturais.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/11/2010
Reeditado em 05/11/2010
Código do texto: T2599003
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