Mórbido prazer
Todos os dias, durante vinte anos, eu acompanhei a vida desta simpática senhora. Levanta cedo, alimenta galinhas, porcos e outros bichos. Com um carinho de mãe, rega todas as plantas e os inúmeros canteiros que tem. Dona Graciliana se dedica a essas atividades com a generosidade que só uma mãe possui. Dona de uma vitalidade inacreditável para alguém no ápice dos seus 87 anos, essa senhora de coração bom, de voz macia e olhar tenro é a própria manifestação da vida. E vida com abundância.
Quem a conhece cheia dessas qualidades não pode imaginar o que lhe dá mais prazer. Sinceramente quando passei a tomar conhecimento disto não pude entender o que a manifestava para esse gosto, vamos dizer assim, tão funesto. Dona Graciliana não tem filhos e nem parentes próximos. Eu diria que não tem pra quem chorar, pra quem lamentar suas dores ou até mesmo pra tecer elogios de praxe quando se perde alguém, por mais safado que por possa ser o defunto.
É isso! Essa senhora se dedica a qualquer hora chorar em velórios. É capaz de subir morros, caminhar quilômetros debaixo de um sol inclemente ou uma tórrida chuva para satisfazer esse prazer estranho.
Certa feita na cidade satélite do Paranoá, no DF, aconteceu uma morte que movimentou toda a cidade. Dona Graciliana nunca ouviu falar do morto, entretanto soube que o velório iria acontecer na zona Rural, nada menos do que 22 quilômetros de distância da sua casa, e ela descambou para lá. Andou pelas serras, morros, veredas e até debaixo de arame farpado ele passou para cruzar a distância.
Lá chegando, banhada de suor e com a respiração mais ofegante do que a de uma vítima de enfisema pulmonar, desabou sua arte sobre o defunto. Os presentes ficaram atônitos com a cena por acharem que aquela senhora tão meiga fosse parente da vítima. Os elogios eram tantos que os presentes chegaram a duvidar que o morto tivesse mesmo alguma mancha em sua ficha de vida.
O defunto ali estirado, dormindo o sono dos justos, tinha cometido crimes bárbaros no Ceará. Matou a esposa, os dois filhos, um cunhado e ainda agrediu a própria mãe, o irmão e os PMs. Respondeu ao processo em liberdade, veio para o Distrito Federal e aqui fez carreira com o tráfico e todos os outros crimes atinentes ao cargo. Uma sumidade na arte de fazer maldades. Morreu alvejado por inimigos e nem teve tempo de se defender ou de se arrepender das atrocidades cometidas.
Não era nenhum santo, mas para dona Graciliana isso não importava. Na verdade, era o menos importante a saber. Era o só debulhar elogios e tudo estava bem. Contam que até hoje é assim. Sempre que sabe de uma morte ela não mede esforços para dedicar ao candidato a uma vaga no céu, ou não, um rosário de orações e rasgados elogios. Ela dedicava ao morto essa tarefa e aos familiares as palavras de conforto.
São razões que a própria razão desconhece.