Por todas as crianças vítimas de violência
Noite do dia 3 de março de 2010. Meu telefone tocou. Atendi... a dona daquela amada voz encontrava-se longe, do outro lado do oceano, e fez com que meus olhos se enchessem de lágrimas, aliás como sempre acontece. Era minha querida mãe. Depois de conversarmos um pouco, contou-me a triste notícia sobre um trágico acontecimento passado lá na terra, naquela manhã. Era sobre um menino de 12 anos, o Leandro, que por coincidência frequentava a mesma escola de meu filho. Aquele menino já algum tempo que sofria de maus tratos. Colegas mais velhos batiam-lhe.
Naquele dia faltou à última aula da manhã. Mais uma vez lhe tinham batido. Durante a hora do almoço, voltaram a bater-lhe. Ele não aguentou, saiu a correr e disse que ia saltar da ponte. O irmão gêmeo e alguns amigos seguraram-no, mas ele foi mais forte, e correu, correu... correu para a morte. Atravessou a ponte sobre o rio Tua, tirou a roupa, e... atirou-se às águas geladas de um rio caudaloso, engrossado pela chuva que nos últimos dias tinha caído. Naquela manhã gelada o rio envolveu no seu leito o jovem corpo do Leandro. Três de março... era inverno e mês das chuvas em Portugal.
Foi com um sentimento de revolta e impotência que ouvi a notícia. Despedimo-nos. Mãe e filha choravam.
Corri para o computador e conectei-me à internet. Queria ver e ouvir a notícia com todos os pormenores, mesmo sabendo que os mesmos só me fariam chorar ainda mais.
Nessa mesma noite, na internet, li um artigo onde os pais do menino, já acompanhados por psicólogos (enviados pelas autoridades governamentais ao local, para prestarem apoio à família), e entrevistados por um batalhão de jornalistas, afirmavam que há um ano atrás, o menino esteve internado depois de ter sido agredido pelos colegas, o que reforçava ainda mais a gravidade da situação. Naquela mesma noite, a ministra da Educação de Portugal, consternada com a notícia, mandara o Ministério abrir um processo de averiguações para saber o que aconteceu na escola. A notícia serviu durante muitos dias para muito moralismo e muito <<passa culpas>>. Serviu para que pessoas que se têm em alta conta se indignassem contra o bullying e se manifestassem publicamente. Só é pena a realidade não colaborar. <<Depois da casa roubada, trancas na porta...>>
Passaram-se dias, muitos dias, e o corpo de Leandro não aparecia.
As autoridase governamentais empenharam-se na busca do corpo, ao longo do rio. Nas buscas estiveram envolvidos elementos e meios, nomeadamente botes e mergulhadores especializados, e dezenas de bombeiros de várias corporações.
Chegou um dia em que alguém viu uma luva azul de borracha presa a um tronco. Era ali, na margem esquerda do Tua, que o corpo de Leandro estava. O sr. Manuel G. encontrou-o, numa manhã, junto ao que resta de três salgueiros – a 12 quilómetros da ponte de Mirandela, a 12 quilómetros do local onde o menino se atirara havia 23 longos e tristes dias. Despertara bem cedo, pegara na cana de pesca e descera o rio, pensando em pescar uns barbos para o almoço. De repente, um odor intenso fê-lo parar.
Nem lhe passava pela cabeça tornar-se o homem mais procurado da terra – ontem era um dia igual a tantos outros. “Pobrezinho, até ficou atormentado”, comentava uma idosa, sentada na berma da estrada, à entrada da aldeia. “Ele não tem telemóvel. Foi a correr, avisar a Guarda Republicana”, dizia outra senhora.
Ainda nem eram 8h quando aquele cheiro tomou conta do seu nariz; desconfiou logo.
Quem andava à beira do Tua sabia que a qualquer momento podia deparar-se com o corpo do menino de 12 anos – já em decomposição. As pessoas da aldeia próxima, saíam com o sacho ao ombro para plantar batata ou semear feijão, tomate, pimento ou malagueta e ficavam olhando para o rio traiçoeiro.
O caudal do rio baixou e desocultou o que dias e dias de buscas não tinham conseguido desocultar. Ninguém sabe há quanto tempo o corpo estaria ali preso, a uns três metros da água, junto àqueles salgueiros mortos, na margem oposta à azenha desativada.
As autoridades acorreram ao local, o corpo foi resgatado e transportado para o gabinete médico-legal do hospital de Mirandela. E Manuel foi conduzido para o posto – para prestar declarações.
“A minha rotina alterou-se completamente”, resumia o homem de 40 anos.
A notícia entrou na casa da família de Leandro por telefone: pela voz da vereadora da câmara municipal.
Os pais correram ao hospital. Cabia-lhes identificar o corpo do filho – libertá-lo para a autópsia. O luto alastrou. A bandeira da Escola Preparatória Luciano Cordeiro desceu até meia haste em homenagem ao antigo aluno, que ali teria sido vítima de bullying
Confirmava-se que, naquele dia, Leandro terá sido agredido por três colegas e socorrido por muitos outros. Os primos e o irmão acompanharam-no até ao último instante. Um dos primos, o de13 anos tentou evitar que se atirasse da ponte. E o de 11 anos ainda se atirou ao rio na tentativa de o salvar. Só que as águas do rio Tua desciam furiosas. Leandro não conseguiu livrar-se delas.
Porque se terá atirado o menino ao rio, se não sabia nadar? A PSP (Polícia de Segurança Pública) convenceu-se de que entrou nas águas acreditando que conseguiria sair. O Ministério Público, porém, ainda não concluiu o inquérito.
Hoje, no lugar onde o menino saltou há uma espécie de memorial – feito de velas vermelhas e transparentes, de flores naturais ou de plástico, de dois cartazes verdes. “Leandro, um menino inocente. Será que a tua dor nunca foi visível?”, questiona um deles. A uns metros, um pai e dois filhos olhavam as águas. “Pelo menos agora a família terá um corpo para velar, para enterrar”, dizia o mais novo. A frase repetia-se ao longo do dia de ontem a cada conversa sobre a descoberta.
Era uma oportunidade de dizer adeus, mas também era uma prova de morte. Toda a família teve acompanhamento psicológico desde que o rapaz se lançou ao rio. O irmão gêmeo e os pais ficaram inconsolávéis. Toda uma aldeia chorou. Toda uma cidade parou. Todo um concelho ficou de luto. Todo um país parou para reflexionar.
Cedaínhos é o nome da pequena aldeia onde Leandro e sua família moravam. Fica a quinze quilômetros de distância da cidade de Mirandela, onde Leandro estudava e onde perdeu sua vida. Naquela aldeia moram quatro dezenas de pessoas: quase todas familiares de Leandro... aldeia, onde todo o labirinto de ruas empedradas se vestiu de negro quando o corpo do menino chegou no final do dia dentro de uma urna para ser velado na capela.
O bullying veicula o silêncio e o medo. Sendo através de agressão física ou psicológica continuada, afeta muitos meninos e por vezes leva a tragédias, e tudo fica tarde demais. Tarde de mais para fazer alguma coisa, para a revolta de quem viu e nada fez, de quem substimou a situação. Leandro sentiu-se, certamente, num estado limite de sofrimento e angústia.
Por todos os meninos que foram e são vítimas: por todos os Leandros, Pedros, Joanas, Madies... aqui fica a homenagem que lhe presto/prestamos...
Ana Flor do Lácio (05/11/2010)