R356

Doeu-me, mas caiu a ficha, eu era um número; senhor R356, e isso era tudo o que importava. A culpa desta crise de identidade era a máquina de senhas da fila do banco, a partir daquele momento eu não tinha nome nem passado, eu era a pura abstração do vago termo “cliente”. Às vezes fantasio sobre a origem destas máquinas; um belo dia teóricos burocratas se reúnem para mais uma decisão maligna: “precisamos reduzir as pessoas a termos mais eficientes”, diz um, “que tal se as transformarmos em números?” responde o outro, e a platéia aplaude.

O cúmulo da indignidade, um número!

Um sino toca, o senhor P107 é chamado ao guichê. Maldita preferência para aposentados. O número está no R320, contando com uma estimativa de um aposentado para cada dez senhas, tenho cerca de 38 pessoas, digo, senhas à minha frente. Melhor é não tentar estimar a demora, se você estimar duas horas, demorarão quatro; o problema é a incerteza de quantas senhas especiais, senhas de aposentados e desistências você pode contar à sua frente, talvez as variáveis mais inconstantes do universo.

Bons tempos eram os tempos da fila. As pessoas sabiam exatamente quantos estavam à sua frente, qual era o ritmo da fila etc. e todos tinham que ficar de pé, não esta frescura sedentária de cadeirinhas azuis. Não! As pessoas tinham mais vigor e saúde antigamente. E quem era bom como ninguém para uma fila eram os soviéticos, esses chegaram a fazer filas gloriosas! Filas para mantimentos que davam a volta no quarteirão sob o frio inverno de Moscou. Por isso são um povo forte os russos, diferentemente desses obesos sedentários capitalistas e suas cadeirinhas azuis.

Mais uma vez o sino, e outra, e outra. Do meu lado o infeliz senhos R371 a quase trinta números da sua vez. Meus pêsames amigo, tempos desumanos esses. Na minha mão o papelzinho amarelo impresso a lazer, não ousei coloca-lo no bolso, afinal, essa senha era eu, tudo o que eu representava para o sistema, desumanamente concebido em série e fadado a acabar na lixeirinha do guichê. Uma morena se levanta na minha frente, simplesmente linda, um corpo escultural e uma expressão de “não me toque”. Me apaixono à primeira vista. Chega no caixa, entrega a senha, e tira da bolsa um enorme maço de contas a serem pagas; desiludindo naquele instante todo o meu amor. Por que tantas contas de uma vez só mulher?! Só para atrasar os outros! Ocupar por meia-hora um dos poucos guichês que tem?! Por que tanto cinismo com os sentimentos dos outros?!?!

Ufa; Desculpem-me... A frieza da espera está acabando comigo.

O tempo passa e finalmente minha vez parece próxima, três desistentes fazem o número da tela pular milagrosamente para o R353. pode ir meu caro senhor aposentado! Agora nada prolongará a minha espera. Sinto a alma leve quando a tela sinaliza R354 e depois R355, venci o sistema, provei minha paciência, sou um Buda, alcancei a iluminação atravez da espera, são pequenas coisas meu caro amigo R371, sua vez também chegará.

-Boa tarde.

-Boa tarde, Poderia descontar este cheque para mim?

-Claro, Por favor seu RG.

Agora já me dava o luxo de pensar o que fazer depois de sair do banco. Aproveitar um pouco do dinheiro para almoçar, fazer aquele pagamento atrasado. Sem um tostão no bolso fui salvo por este cheque, já podia relaxar, o dia estava lindo lá fora, logo chegaria o final de semana...

-Não tem fundos.

-Me desculpe, como?

-O cheque não tem fundos senhor.

Indignado, faminto, cansado... Fui embora.

icaro mendes
Enviado por icaro mendes em 04/11/2010
Código do texto: T2596073
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