Totó

Era uma tarde como as outras; morna, preguiçosa, característi-ca das tardes de fim de inverno.

Eu caminhava indolentemente pelas ruas do bairro que tão bem conhecia. Conhecia e amava – como amava a todos que moravam ali. Por eles também era amado. Sempre recebia atenção e carinho de todos; principalmen-te das crianças. No entanto, jamais poderia imaginar que, naquele dia, pudesse viver a pior aventura de minha vida.

Alguma coisa se enroscou em meu pescoço e começou a aper-tar. Sufocava-me. Fazia as veias e artérias de meu corpo latejarem. Tentava me livrar, mas não conseguia. O brutamontes que estava na outra extremidade da corda era mais forte do que eu. Por fim, sucumbi. Entreguei-me para não morrer ante o olhar atônito dos transeuntes. Olhei para meu algoz com súplica nos olhos. Eu era inocente! Jamais cometera um crime! Ele não se comoveu; agarrou-me com firmeza e me lançou em uma gaiola junto a outros que tam-bém reclamavam e protestavam alegando inocência. Transeuntes que presen-ciaram a cena também começaram a protestar. Mas tudo era em vão! O ho-mem da carrocinha parecia surdo aos rogos populares. Feito isso, fechou vio-lentamente a porta, ferindo um companheiro de infortúnio. Entrou no veículo e se dirigiu ao que, acredito, era um circo de horrores. Fomos lançados, sem ce-rimônia, em cubículos malcheirosos onde se encontravam outros cães, amigos que há alguns dias não via mais nas ruas. Era ali que eles estavam. Jamais poderia imaginar o paradeiro deles. Misturavam-se, naquele local, fêmeas no cio, outras grávidas, algumas tendo seus filhotes, animais doentes, animais ferozes... Faltavam água e comida. Higiene também não havia! Dado o exíguo espaço, os pequenos filhotes eram esmagados, morriam e eram comidos por aqueles que não conseguiam conter o instinto famélico.

Às vezes, uma pessoa vinha nos visitar. Procurava encontrar o amigo perdido. Seus olhos nos examinavam minuciosamente. Indignava-se com as condições em que nos encontrávamos, mas nada podia fazer. Eu ten-tava sensibilizá-la latindo e abanando meu rabo. Era inútil! Eu nunca tive um dono visto que amava a liberdade e as delícias da vida ao ar livre e agora não tinha a quem recorrer.

Meus amigos, talvez por não saberem meu paradeiro, não vie-ram me procurar e, agora, após dez dias de cárcere, sou novamente espremido num exíguo espaço ao lado de outros companheiros de infortúnio, a caminho de algum lugar desconhecido onde, certamente, a morte me espera, escrevo esta carta que, quem sabe, conseguirá sensibilizar os corações daqueles com quem convivemos há mais de vinte mil anos.

Totó.

Agosto/99

Publicado no Jornal O Informativo, Ano VI, n.º 82