Um discurso de formatura

João Paulo era único aluno negro naquele colégio, já que a população da cidade era constituída por pessoas de origem alemã e italiana.

No auge da Jovem Guarda, então com seus 17 ou 18 anos, João Paulo queria de toda forma ser cantor. Imitava Agnaldo Timóteo e Evaldo Braga (já falecido), mas era uma lástima.

Nas homenagens ao Dia do Professor, cantou “Disparada” - que se tornou famosa na voz de Jair Rodrigues, mas desafinou tanto que o conjunto que o acompanhava parou de tocar. Mas ele foi até o fim.

Dava para perceber que ele buscava alguma afinidade com esses artistas.

Por ocasião da formatura com baile, ele foi incumbido, já que todos se recusaram, a ser o orador das cinco turmas em um discurso preparado pela professora de educação artística Irmã Tereza.

O clube onde a cerimônia foi realizada estava lotado. 150 formandos, pais, amigos, professores e lá foi João Paulo com as seis folhas. Pancoso e todo sorridente fez os agradecimentos de praxe e foi além.

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“Sou o único formando negro aqui; sou filho de Dona Sebastiana, cadê você mãe? Levante! Essa é minha mãe pessoal. Empregada doméstica, mãe solteira e que me orientou a nunca me apossar das coisas dos outros. Passei algumas vergonhas mãe, mas a senhora não. Mas tenho outras coisas para dizer.

Para alguns amigos que fazia gozação da cor dos meus sapatos, semana preto, semana marrom, verde, agora eu conto: era sempre o mesmo par, eu é que os pintava para tentar disfarçar. Eu só tinha aquele.

Ah, os meus cadernos, todos de capa preta, não eram de minha cor preferida. Eles eram mais baratos, isto sim! Essa é a verdade Carlos, Gustinho, Hugo...

Perdoa Angélica pela tarde que fomos à sua casa para aquele trabalho escolar e ao servir o café fiz vexame e provoquei risos. Coloquei primeiro a água na xícara, depois o açúcar e finalmente o café solúvel. Não sabia que era ao contrário. Eu nunca havia tomado café solúvel na minha vida.

Sérgião, aquela piada que você fazia questão de contar quando eu estava por perto sobre os dois cachorros, um branco e outro preto, que entraram na igreja e um deles fez xixi e você perguntava: - Quem foi? O branco, né! O preto queria fazer cocô, mas não deu tempo, alguém o tocou para fora. Mas cachorro não é gente, negro não é cachorro.

Maristela, quando você foi hospitalizada e necessitavam de sangue para a sua cirurgia, eu fui o único dos estudantes que não teve medo da doação. Não foi possível porque o meu não era compatível com o seu. Quando você se negou a me emprestar aquele livro famoso ’O Chefão’, de Mario Puzo, eu fiquei sentido, não tive o prazer de lê-lo, agora que passou a curiosidade, passou também a mágoa.

Solange, quando você me ‘tirou’ de amigo secreto e trocou-me por outro colega eu não liguei, pois sou amigo de seu pai que sempre me chamou carinhosamente por ‘neguinho do coração branco’. Ele deve estar presente... Olá seu Francisco! Olha o ‘neguinho’ aqui com roupa quase nova!

Professora Inês, obrigado pela paciência que teve comigo, sou burrinho mesmo, mas quem escreveu ‘A mão e a luva’ foi Machado de Assis e não José de Alencar, e por isso tirei nota 5 naquela redação, poderia ser 6. Mas o 5 foi bom também.

Obrigado a todos! Agora vai começar o baile e vou dançar a valsa com a preta mais linda aqui presente. Claro, só tem ela. Um dia mãe, professores e colegas, vocês irão ter muito orgulho de mim. Prometo”.

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As folhas que ‘continham’ o discurso e que João Paulo consultava com ares de palestrante, foram entregues logo ao final da cerimônia à Irmã Tereza.

Mas estavam todas em branco.

João Paulo é hoje um bem conceituado advogado na capital do meu Estado.

P.S. Os nomes, com exceção de João Paulo, são fictícios.