Folha em Branco VI (algumas recordações de infância...)

E esta noite a folha continuava vazia e eu sempre com algo para dizer, mas não sabendo bem a altura certa para me exprimir…Coisa estranha em mim…Depois de ter escrito um complexo conto de Ficção cientifica onde me revisitei, revisitei a minha ausência de crença, a minha sede por uma crença, parte dos meus amores e a minha busca eterna pela felicidade a todos os níveis, dei comigo a querer voltar às coisas simples da vida e da escrita, muito em parte influenciado pelos conselhos de um velho mestre dos tempos do liceu, que dizia mais ou menos que para querermos aceder a ideias mais complicadas temos de saber trabalhar as coisas simples da vida, e também influenciado pela escrita cativante duma bela e muito, muito querida amiga minha, cuja escrita é o meu actual e espero que durante imenso tempo pela riqueza transbordante que ela possui farol literário.

Já abordei este tema num conto algures, mas hoje apeteceu-me voltar a ele por ser das temáticas mais queridas da minha infância, da minha vida…E por isso aqui vai…

Sabemos identificar no corredor de memórias e sensações a altura em que nos apaixonámos pela primeira vez, em que sentimos um pulsar vibrante que nos atirou rumo ao infinito?

Eu sei, só não sei o dia, mas sei a altura, pois foi o principio de uma paixão vibrante que ainda hoje se mantém, e se manterá até ao fim dos meus dias, que espero longos, pois ainda há tanta coisa, mas tanta coisa para ver e sentir…:

Na minha cidade há um parque temático feito por um benemérito e pedagogo que contem nele um exemplar de cada casa nacional e de cada monumento mais significativo, isto à escala de uma criança, pois o parque foi feito para as crianças, sendo um espaço com mais de 50 anos que cativa quem lá vai, pois não há coisa semelhante a nível nacional, e mesmo a nível internacional penso não existir tal coisa…O espaço chama-se “Portugal dos pequeninos” mesmo a propósito…

No final desse parque, durante quase 20 anos existiu um avião de transporte datado da II Guerra Mundial, um avião que foi vendido pelo III Reich à nossa ditadura, que no balanço entre os diferentes lados do conflito, e na sua neutralidade usava material dos beligerantes, embora sem se envolver directamente com eles.

Eu na altura da visita inicial era bastante pequeno, teria para ai uns 2/3 anos e tudo foi uma maravilha, pois era maravilhoso entrar em casas da minha altura e brincar ao mundo dos adultos num mundo de crianças, era algo de maravilhoso que mal consigo transmitir, mas…apesar de ter adorado, a minha atenção foi para o avião…Fiquei pasmado, maravilhado, sem palavras…As casas eram lindas, mas o avião…o avião era tudo…As casas duram séculos, os aviões décadas, mas o que me chamou mais a atenção foi o avião. Adorava estar dentro das casas, mas amava perder-me debaixo das asas daquele pássaro imenso, vibrava ao olhar para o seu interior (que estava fechado aos visitantes) e imaginar-me no seu interior, em viagens infinitas por terras que na altura nem sequer sabia existirem, pois o que eu queria mesmo era estar lá dentro e ir pelos ares fora, sem horas nem tempo.

Quando comecei a crescer (e sempre com visitas frequentes para ver o “meu avião”) comecei a ler coisas sobre a aviação, sendo que as minhas prendas de anos e de Natal eram sempre bolas de futebol, aviões de plástico ou livros sobre aviões, não queria mais nada, pois para mim não havia mais nada…E era até fácil adivinhar o que eu queria nas ocasiões festivas…Eram sempre as mesmas coisas…Com o tempo o amor pelo futebol desapareceu, mas os aviões…esses mantiveram-se e mantém-se…Hoje apesar de ter mais interesses, o interesses de uma pessoa da minha idade (adoro namorar, comprar um bom Cd, um livro, de ir ao cinema, de jantar fora em boa companhia, de fazer um cativante viagem, de me apaixonar pelas coisas belas mas simples da vida, de sair à noite e dançar, de manter longas e deliciosas conversas com as pessoas que amo, de escrever), dizia, mantenho sempre uns trocos, um tempo e um espaço na minha casa para mais uma revista, mais um livro, mais um avião.

Aqui há dias mudei a cama e o meu guarda-fatos, mas o espanto do homem que me montou tudo não foi para as dezenas de livros que tenho espalhados pelo quarto, foi para a minha enorme e bela colecção de aviões…Vos garanto que o ar dele foi de espanto, pois apesar de ter imenso que fazer e o tempo curto, não deixou de apreciar aquela colecção (e é só uma parte pois o resto está espalhado pela casa…) e de ma elogiar. O mais engraçado é que a minha já significativa Biblioteca o poderia levar a locais mais prolixos, mais vastos, mas olhou foi mesmo para os aviões…

Quando entrei na adolescência, o meu Tio Zé, que é uma espécie de um conselheiro espiritual para a vida, escreveu num belo livro que me ofereceram com aviões a frase “Quem tem aviões na cabeça escusa de rastejar”, frase que não entendi na altura, mas que mais tarde fiz dela uma das frases da minha vida pelo seu enorme alcance. O amor físico e mental faz-me sonhar, faz-me sentir ser maior embora continue menor, mas os aviões fazem-me ir ao céu supremo, fazem-me tocar a imensidão, fazem-me acreditar que o impossível é algo que eu está preso dentro de nós e que só depende de nós a capacidade em vencer essa barreira invisível.

Recentemente conheci um jovem neto de um combatente alemão do cenário Norte-Africano da II Guerra Mundial, esse jovem é das pessoas mais nobres que conheci, e depois de falarmos um pouco ele contou-me que o avô foi salvo pelo mesmo tipo de avião pelo qual eu me apaixonei…A vida de facto é algo de sublime, é um dom magnífico, pois mesmo nas coisas mais pequenas descobrimos tesouros sublimes, e eu amo intensamente essa vida, amo-a nos olhos de uma mulher, num poema que me faça chorar, no gesto terno de uma pessoa amiga quando nos sentimos tristes e nada parece valer a pena até nos tocarem e nos dizerem com os olhos, com um trejeito ou com os lábios que valemos a pena, que o sofrimento é apenas uma palavra vã e baça, amo, adoro perder-me entre a chuva do verão quente, a dançar debaixo dessa água magnífica, adoro perder-me a cantar uma música que me toque, adoro gritar quando venço algo, adoro o amor, adoro a paixão, adoro ler algo que me cative e me faça subir aos céus dos sentires imenso, adoro escrever palavras que sinto irem agradar alguém e que as teci com tanto carinho como o ourives faz uma jóia, adoro amar pelo simples e sublime gesto de amar, adoro o simples gesto de respirar pois quer dizer que estou docemente vivo, adoro viver, e esse viver fica espelhado em muita coisa e até quando paro de fazer o que tenho que fazer para observar a passagem de um avião, para mim um dos objectos supremos que comandam a vida, que comandam o sonho, pois sem o sonho nada somos a não ser um mero pó existencial…