AS CALÇADAS DO INFERNO

São tantas as emoções...certa vez cantou o rei Roberto Carlos.

De fato, são tantas.

Este feriadão nos foi o exemplo delas, posto que emendamos o Halloween com as nossas eleições presidenciais, seguindo-se o seu "day after" no dia de todos os Santos- que não é dia de político algum, mas que ontem foi!- e culminamos com o dia de hoje, no qual comemoramos o dia dos "FINADOS".

E por aqui, hoje também temos um aniversariante na família.

Saibam, embora pareça estranho, também se nasce no "dia dos mortos", e ademais, para quem acredita na vida além da "morte", não existe este tal dia.

Mas claro, embora me pareça mais um dia de incentivo ao comércio, também comemoro os meus falecidos de corpo, os que já não estão materialmente por aqui.

Porém,o foco da minha crônica de hoje sai deste meu preâmbulo para as calçadas de São Paulo, e aqui eu gostaria de falar da "morte em vida", acreditem, isto também é possível, e ontem, tive a certeza do que escrevo.

Soube pela mídia que o comércio da vinte e cinco de Março explodiu em mais de um milhão de pessoas pelas suas adjacências..

Pois bem, eu era uma unidade neste milhão.

Resolvi logo cedinho ir ao Mercadão Central e estiquei para a redondeza a procura de bolinhas de Natal.

Cometi um erro crasso: fui de automóvel e me perdi na região da zona cerealista, principalmente por falta sinalização efetiva, e um trajeto de vinte minutos eu o fiz em duas horas, perdida naquele miolo infernal... rodava rodava e não saía do lugar...

Depois de muito tempo rodando, compactuei da exploração da zona azul e larguei meu automóvel na mão dos guardadores de carros, posto que os estacionamentos estavam lotados.

Se assim não fosse, eu não teria o que lhes contar.

Andando pelas paralelas e perpendiculares à Vinte e Cinco de Março, de repente, tive uma forte tontura em decorrência do tumulto da multidão e me dei por feliz quando, ao longe, visualizei uma calçada vazia de pedestres para me escorar.

Achei aquilo estranho porque a aparente paz contrastava flagrantemente com o alvoroço da calçada contralateral.

Foi aí que entendi o que ocorria: eu acabava de invadir o lar alheio.

Então, ali pude presenciar, de muito perto mesmo, a intimidade daquelas pessoas.

Pelas calçadas esburacadas, característica de todo aquele centro, uma legião de corpos sofridos e maltratados jaziam deitados sob um forte odor de uréia, uns acabando de despertar, outros já preparando o almoço, aonde pude ver poucas batatas e tiras de pimentões vermelhos picados sobre um fogareiro enferrujado (aliás, o "fome zero" ali se concretizava graças também ao lixo gastronômico da região), em meio às algumas crianças que se banhavam em bacias d'agua turva, enfim, todos amontoados entre si, alheios à confusão urbana daquela região e também a mim, uma equivocada transeunte daquela dramática calçada.

Entre buzinas dos automóveis, intenso monóxido de carbono dos ônibus, muito lixo, gritos de vendedores ambulantes, lá estava o inferno que eu não conhecia, ao menos não tão de perto, à luz das calçadas da vida de São Paulo, a maior cidade do país, uma das maiores do mundo... em franca epidemia de "mortos vivos".

Eu lhes pedi licença, quase a tropicar em alguns, para prontamente procurar sair do lar alheio. Lar...amargo lar...

A sensação foi indescritível e não há arte das letras que conseguiria expressar o que palpitei.

Por alguns ínfimos instantes senti que meu espírito saiu de mim e compartilhou do inferno da Terra. Sim, inferno existe, sim! E bem perto de todos nós.

Olhei para os meus pacotinhos de bolinhas, agora meio sem sentido, e pensei que o Natal de muita gente ainda sequer aconteceu nesta vida dum país que há oito anos dizem ser outro, porque de fato, seria impossível acreditar que alguém, algum dia, se sentiu "nascendo" naquela e para aquela condição de vida.

Logo mais à noite, não sei se coincidentemente, ouvi com atenção aos propósitos da nossa já eleita Presidenta, a primeira mulher a nos representar como Nação. Mais uma emoção!

Falou claramente em ERRADICAÇÃO da miséria. Voltei-me àquelas calçadas do inferno!-a sentir alguma remota ponta de esperança.

Talvez a sensibilidade feminina consiga enxergar que precisamos dum céu emergente...nesta infernal "Terra dita de todos".

Hoje, neste primeiro dia de Finados pós eleição, peço à Deus por todos aqueles que já não estão entre nós, porém "aos deuses" daqui peço principalmente pelos mortos em vida, que a exemplo de outras tantas calçadas do Brasil, agonizam nas praças públicas, aos negligentes olhos do poder que tudo pode e tudo quer...mas que, infelizmente, pouco enxerga.

De fato, quantas são as emoções às mais atentas lentes...