Finados - Morrer como o                            poeta...

                 O "nunca mais" é a ausência
                 sem retorno, a morte.
                                             Rubem Alves

     Sou um habitual leitor dos obituários. Quem me conhece, sabe disso. Vez em quando, eles me surpreendem noticiando, solene ou discretamente, a morte de um amigo ou de um parente querido, distante no tempo e no espaço. E os meus olhos "vão se enchendo de ausências".
     Com angustiante preocupação, verifico que a maioria dos que estão indo tem, mais ou menos, a minha idade. E essa dorida constatação, creiam, leva-me a fazer esta indagação: será que no próximo obituário estarei entre os pranteados? 
     Essa de uma morte a qualquer momento me chateia.
     A morte, nem São Paulo gostava de admiti-la. Ed René Kivitz, no seu O livro mais mal-humorado da Bíblia (refere-se ao Eclesiaste) , destaca que o apóstolo Saulo "só no final da sua vida" -  aceitou melhor a idéia da morte, em carta que enviou a Timóteo. 
     Ah! Eu só queria morrer depois de festejar - com bolo, velas, música e flores - o meu centenário, que ocorrerá... não digo quando.
     Penso nisso todos os dias.  E rogo ao Altíssimo que, nos meus cem anos, mantenha-me lúcido, lépido e capaz. Quero despedir-me deste velho e adorável mundo com um largo sorriso de agradecimento. E, ouvindo minhas canções preferidas, minorar a saudade que certamente levarei comigo para a eternidade.

     Amanhã, Dia de Finados, não irei aos cemitérios. Ao longo de muitos anos venho dizendo duas coisas: que os meus mortos, guardo-os, todos, na memória, com suas virtudes e seus defeitos; e que faço do meu coração o mausoléu de todos eles.
     Nem aos velórios compareço.  Os velórios me incomodam. A presença do morto se despedindo em silêncio, me constrange. E a irreverência dos convidados diante do pranto, sincero ou forçado, dos parentes do falecido, eu não aceito.
     E até nem teria razões para evitar os cemitérios; principalmente os mais modernos: eles são mais suaves, mais alegres, mais confortáveis. 
     Pesados são os cemitérios antigos, apesar da suntuosidade de alguns dos seus mausoléus que a gente, forçosamente, pára para admirá-los. 
     Nos cemitérios modernos, se eu já não houvesse me decidido pela cremação, nunca me oporia (e defunto tem vontade?) em ser mais um de seus hóspedes. 
     Hospede? Sim, usei essa palavra, lembrando-me destes versos de Castro Alves, que parecia não tolerar as necrópoles: 
     "Quando eu morrer...não lancem meu cadáver/ No fosso de um sombrio cemitério.../ Odeio o mausoléu que espera o morto/ Como o viajante desse hotel funéreo."  
     Os restos mortais do poeta dos Escravos, contrariando o seu desejo, estiveram, por longo tempo, repousando no chão frio do sombrio Campo Santo de Salvador. 
     Um dia, eles foram levados para um imponente mausoléu erguido em uma bela praça da capital baiana, a Praça Castro Alves, de tantos e barulhentos carnavais. Sobre o seu mausoléu, sua estátua lembrando  a todos que que passam que "A praça é do povo como o céu é do condor".

     Continuado na companhia dos poetas, nesta véspera de Finados. 
     Na Lira dos Cinquent´anos, Manuel Bandeira deixou um poema, ao qual retorno pela enésima vez. Mas é a primeira vez que o faço, num dia de finados.  Ele é um pouco longo, mas vale a pena ser transcrito; justificando o título que dei a esta funérea crônica: Morrer como o poeta.

     A Morte Absoluta
     Morrer,
     Morrer de corpo e alma.
     Completamente.
     Morrer sem deixar o triste despojo de carne,
     A exangue máscara de cera.
     Cercada de flores,
     Que apodrecerão - felizes! - num dia,
     Banhada de lágrimas
     Nascidas menos da suadade do que do espanto da morte.
     Morrer sem deixar porventura uma alma errante..
     A caminha do céu?
     Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
     Morrer sem deixar um sulco, um riso, uma sombra,
     A lembrança de uma sombra
     Em nenhum coração, em nenhum pesnamento,
     Em nenhuma epiderme.
     Morrer tão completamente
     Que um dia ao lerem o teu nome num papel
     Perguntem: "Quem foi?..."
     Morrer mais completamente ainda,
     - Sem deixar sequer esse nome.

     Com a cremação de meu cadáver, e com minhas cinzas lançadas, se permitido for, nos jardins de um  convento franciscano qualquer, como nos versos do Manu... morrerei completamente...
     Para os mortos, no seu dia, este recado: que continuem descançando em paz... Que não pensem em ressurreição, pois, as coisas por aqui estão bem piores do que quando vocês se mandaram...
      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/11/2010
Reeditado em 24/10/2019
Código do texto: T2591122
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