BAR DOS SONHOS

Nas andanças pelas noites, nos idos tempos de adolescente, sereno molhando os cabelos longos e o estômago judiado das tantas manguaças, pedindo uma migalha qualquer para acalmar as broncas do intestino barulhento, eu já buscava um bar para apaziguar o espírito, molhar o ânimo e aliviar as pernas . A garganta seca e a vontade de mais um gole, para encorajar o espírito e fomentar argumentos para quando chegasse em casa, eu já procurava um bar. E claro, um rango qualquer, um misto quente, uma cochinha de galinha do dia anterior ou mesmo um pastel velho já seria suficiente.

Mais tarde, quando os dias já tinham me ensinado tanto, as noitadas já não eram tão inconseqüentes e o conhecimento adquirido vida afora já permitiam a troca, eu continuava querendo encontrar um bar. Um local que servisse não apenas para descansar as pernas ou calar os roncos do estômago vazio, mas onde pudesse entrar nas longas conversas despretensiosas, passeando pelos debates dos temas mais inusitados, até os que somente interessam àqueles que teimam em querer resolver os problemas do planeta, passando pelas questões políticas, existenciais, relacionamento, filosofia e tantos outros, buscando assim soluções mágicas, nem sempre práticas, mas sempre pragmáticas.

Um Bar. Tão somente um Bar. Mas um Bar onde não tivesse que tolerar imbecis e idiotas, mas que entre goles, prosas e versos, eu pudesse misturar o sabor da boemia, a inteligência dos argumentos, a irreverência do humor sadio e as amizades despojadas de qualquer interesse que não fosse unicamente a troca das idéias, a incitação ao pensar e ao saber. Evidente que não poderia descartar certo quinhão de intolerância e radicalidade, mas sempre de forma passageira, sem registro nem resquícios de mágoas ou desavenças que perdurassem além do calor das discussões.

Um bar sem porta, sem grades nas janelas, sem hora para abrir nem fechar. Que cada um entrasse e saísse quando bem lhe conviesse e que pudesse beber o que bem entendesse, do jeito que bem entendesse e que só pagasse se quisesse, quando e como quisesse. Tudo registrado a lápis, num caderno dependurado na parede atrás da porta, chamado de “carne seca”.

Aos parceiros que me acompanham e vivem a escutar as longas conversas deste butequeiro de carteirinha e maus hábitos - ou bons - pergunto o que seria da história se não houvesse quem a contasse. E como contá-la apenas em frases lacônicas, sem repassar as imagens que somente a dissertação e os pincéis regados com palavras podem pintar, feito telas que permitem a imaginação adentrar no quadro, perder-se nas imagens e sentir todas as cores, sentidos e sabores das histórias do viver.

Tudo bem. Não o encontrei na adolescência, na juventude. Mas encontrei agora e deixa então eu aqui ficar, ao bel prazer do livre e absoluto arbítrio, contando causos e abusando da paciência de quem , pacientemente, se dá ao gosto de ouvir (ler) minhas histórias, minhas mentirinhas casuísticas e minhas invenções fantasiosas do imaginário do pretenso poeta sonhador e metido a besta.

E não pensem que todo poeta é um boêmio. Muito menos que todos os boêmios sejam poetas. Não tem regra nessa relação, que até pode parecer incestuosa, mas não o é. Não mesmo. Apenas gosto de escrever meus versos, de vender a concreta ilusão das palavras adocicadas de verbos em pétalas que desfolham qual sorriso das tenras e delicadas donzelas ao avistarem seu possível príncipe.

E gosto também de um bar gostoso, uma cachaça vinda de boa fonte e guardada com o mesmo zelo com que se guarda a chave da porta dos fundos das amantes fortuitas, para serem usadas nas madrugadas serenas de final de boemia, quando a madrugada já esteja raiada do vermelho do sol que vai parindo do fundo da terra, acordando a passarinhada e a natureza.

Coisa boa essa possibilidade de ficar contando histórias e inventando causos, nunca mentirosos, mas também não isentos de algumas invenções e fantasias. Nessas conversas de bar, as palavras, verbos, versos e prosas, onde quase tudo pode ser contado, vale dizer que não é permitido contar mentiras. Não mesmo. Não se precisa, contudo, dizer somente e necessariamente a verdade.