CHICO BUARQUE E O MICO.
Por Carlos Sena


 

Hoje o dia não dá praia. Pela janela do apartamento, o mar se descortina ignorando que existo. Da varanda, um sentimento me invade, semelhante ao da “moça feia que debruçou na janela e sorriu, pensando que a banda tocava pra ela” – trecho da música A BANDA de Chico Buarque. Da janela (varanda), sinto que o dia meio chuvoso me saúda, e que o calçadão da praia meio deserta, certamente se guarda para mais tarde, quando eu for caminhar levando a tiracolo meus conflitos, anjos e demônios. Daqui, do décimo andar, fica mais difícil sentir o cheiro de terra molhada, como nos tempos de criança. Mas o sentimento é este que se conjuga nos dois tempos que dispomos, inexoravelmente enquanto vivo estivermos: o tempo de dentro e o tempo de fora.

Da “moça feia”, não sei do seu destino. A Banda continua tocando em nossa festa interior. O coreto da modernidade tem outra performance, mas a gente se arremessa mentalmente, pelo atrevimento que estar vivo permite.

De fato, “tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Chico Buarque me socorre sempre com suas canções que, além de primorosas, mais parecem uma crônica do cotidiano. Sentindo o mundo pelas várias perspectivas, esse sentimento de morte que por vezes me invade, com certeza não me privilegia. O ser humano é essa possibilidade, pois não podemos esquecer o valor da saúde que sempre reaprendemos quando adoecemos; o valor do sorriso, que o choro nos faz refletir.

Hoje não é dia de praia. A minha praia é todo dia. A minha raia é todo dia. O meu prazer e a minha dor são meus. Zeus da vida, Deus da Luz, Jeová que vem; que tem, que nem. Relógio que atrasa não adianta. Mas relógio parado, pelo menos duas vezes ao dia ele acerta. Meus ponteiros são meio assim: se encontram duas vezes ao dia, enquanto eu me desencanto sempre diante do gesto de adeus. Partir, embora inevitável, dói. O gesto de adeus é solitário qual sombra magra de Augusto dos Anjos rumo à casa AGRA no Recife. A solidão é o saldo do adeus em todos os seus vieses. Novamente Chico: “A saudade é arrumar um quarto do filho que já morreu”...

Da janela do apartamento, décimo andar, reflito: por não ter tido filho, não posso SENTIR a dor de arrumar o quarto; por não ser mulher, não posso me sentir “a moça feia que SE debruçou na janela”; mas por ser visceralmente elétrico, tétrico, telúrico, romântico, sinto que de fato “tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Mas eu nem parti nem morri. Socorro Chico, não me deixe pagar esse mico.