Folha em Branco V (Homenagem a um amigo)

Hoje já escrevi, mas isto da escrita não tem lei no que toca ao tamanho da escrita, ou à vontade de o fazer, pois o que a comanda é essa vontade…Como sempre tenho na minha escrivaninha virtual uma folha em branco, à espera de mais sentires, de mais memórias, ou apenas de mais sensações…Não estava previsto de facto escrever, mas foi ao ler um doce e belo poema de uma querida amiga minha sobre uma passada experiência profissional que me lembrei de ti, e do imenso que me ensinas-te, meu querido amigo João G.

Recordo pois com saudade aquela noite, está agora a fazer 9 anos em que como Estagiário de Serviço Social tinha de ir ao futuro local de estágio para conhecer os meus supervisores. Não percebendo, a não ser a nível teórico, quase nada de drogas escolhi um local algo visto de lado por muito boa gente onde se fazia a prevenção de HIV/SIDA/AIDS, dando seringas e outro material legal, além de preservativos e de lá se fazerem testes para a despistagem de SIDA, sendo que os técnicos também informavam as pessoas que queriam saber dos riscos que corriam ou davam aconselhamento a pessoas com esta doença e as reencaminhavam para os locais certos onde poderiam ser tratadas e convenientemente seguidas. Apesar de estar aberto ao público em geral, aquele espaço era mais vocacionado para os toxicodependentes, para os quais tínhamos uma sala de estar com televisão e onde servíamos também um cafezito, e, quanto tínhamos, dávamos alguma comida para confortar os estômagos e aquecer as almas de quem nada tem…

E foi assim que um jovem bastante imaturo que de drogas conhecia apenas o que lera ou o que via nas ruas, e que nunca tinha conhecido ninguém com SIDA ou com hepatites entrou na sala dos Supervisores, com medo, mas, caramba, tinha que fazer uma apresentação e tentar dar o melhor aspecto possível para lá ficar a estagiar. Já foi há algum tempo, mas sei que mal falaste, deixando aos outros essa tarefa, enquanto, de semblante carregado observavas todos os meus movimentos, todas as minhas hesitações ou incipientes certezas, observaste e eu de ti nada consegui dizer quando cheguei a casa e comentei as minhas primeiras impressões…Disse se calhar que havia um tipo calado que observou e nada mais, ao passo que os outros foram bem mais simpáticos…Não o sabia na altura, mas sei hoje que tudo fazia parte da tua postura…Tinhas já visto e trabalhado com muita gente, que falava bem, mas que na prática…Tu eras um técnico do terreno, do melhor que havia, já tinhas visto muito, se calhar demasiado, e por isso observavas desconfiado…

E no primeiro dia de estágio, pois tinha sido aceite, e no primeiro turno (a instituição funcionava das 17h-23-30h em dois turnos, sendo que o primeiro ia até às 21h, mais vocacionado para um atendimento mais formal, mais burocrático, ao passo que o segundo funcionava mais como “centro de dia” onde a aproximação com os utentes era maior, onde se trabalhava mais o aspecto humano desses utentes) a coisa correu bem, eu sempre a observar, sem nunca intervir, e muito menos falar…Enfim aquelas duas horas passaram rápido, até que tu entraste às 21h e o mundo desabou sobre a minha cabeça…Implacável sais-te da tua postura reservada da entrevista, e num tom seco disseste para o que vinhas e o que esperavas de mim, numa rispidez e certa brutalidade oral que se haveria de prolongar durante semanas, em que cada palavra que me atrevia a dizer, cada gesto era mais do que pensado…E eu tive um medo desgraçado de ti…No final do turno tu e o teu colega subiram a rua para beberem um café, despedindo-se com um frio “Boa-noite” e deixando-nos à nossa sorte e com as dúvidas que me assaltavam de uma forma avassaladora…E eu pensei…pensei como gostava de me juntar a vós e de ir beber o tal café, gostava de fazer parte de vós, pois apesar da péssima imagem inicial, desde o inicio que simpatizei contigo…

E durante um mês o turno inicial era de doce aprendizagem, e nos gostávamos de tal, deste suave remoer do tempo onde tínhamos tempo de confrontar a técnica teórica com a prática, sendo que o segundo turno…Bem, nos tremíamos mal te víamos a entrar, indagando se o teu silencio inicial era bom ou mau sinal…

A cada dia as dúvidas aumentavam e eu cada vez tinha menos certezas, começando a ouvir mais do que a falar, e penso que foi isso que fez com que simpatizasses comigo, pois a teu lado todo o meu edifício teórico de certezas se desfazia em pó para dar lugar ao teu, bem mais prático e pragmático, e penso que percebeste essa mudança que ocorreu em mim e que foi o ponto de viragem naquela noite…

E naquela noite entrou um dos mais veteranos toxicodependentes com perto de 30 anos de vícios e muitas manhas, mas respeitado pelos técnicos porque se respeitava qualquer pessoa, e porque de certa forma ele tinha uma espécie de uma honra para contigo, eram velhos companheiros de velhas batalhas…E lembro-me perfeitamente…estávamos na sala, o utente entrou, e no espaço de poucos minutos desfaleceu quase sem vida no tapete. Com o sexto sentido instintivo que sempre tive em situações de emergência, levantei-me e deixei que vocês o reanimassem enquanto não vinha a ambulância entretanto chamada, fiquei a um canto a observar e à espera que a minha inutilidade fosse útil…O utente safou-se (tinha tido uma overdose, mais uma…) e nessa noite, ao sair não fui rua abaixo, fui convidado para o tal café contigo, meu Mestre.

Ao que parece a minha postura calada e sem certezas operou a magia de me consideraram um dos vossos, o tal edifício de absolutos que exibi na entrevista e que no espaço de um mês deixara de existir fez com que passasse a ser alguém a ter em conta, além da minha postura cívica e de rectidão éticas que ao que parece caíram bem quando a inseri numa prática profissional inicial.

Foi o inicio de um belo e inesquecível compadrio, foi o inicio de adorar o turno da noite e de olhar de lado o de dia, sobretudo teórico, pois era no último turno que sentíamos o pulsar dos utentes, em que olhávamos olhos nos olhos para estes novos excluídos ouvindo-os tendo o prazer de os ouvir, pois a maior parte das vezes a ajuda começava por essa postura de darmos espaço, o espaço de quem precisava ser ouvido, sem julgamentos, apesar de estarmos sempre alerta, pois a maior parte das vezes eles misturavam a realidade com a sua ficção e mentiam-nos para serem mais aceites ou então para levarem mais umas seringas e bolitos…Ao ouvirmos aprendíamos como funcionava o nosso público-alvo, e ao aprendermos sabíamos como intervir…sem pressões, lenta, mas seguramente…Mas a importância suprema do ouvir foi algo que nunca esqueci.

Não se pense contudo mudaste…Continuavas brutal, impiedoso e muitas vezes duma crueldade que me espantava, mas isso era para me moldar, pois eu ainda tinha demasiado certezas que me tornavam rígido…eu era ainda um bloco de pedra a precisar de ser trabalhado para ter a forma certa de uma espécie de arte, a arte das relações humanas, para mim um mundo ainda a explorar…Numa das célebres noites fiquei contigo sozinho no café, e já não sei o que fiz no estágio, sei apenas que nessa noite foste mais ríspido do que o habitual, sendo que eu fiquei calado, intimidado a ouvir-te, mas qualquer coisa em mim surtiu a necessidade de te justificares, e tu lá me disseste que a tua tarefa era desmontar peça por peça as peças da minha cabeça, para depois as limpares para as voltares a colocar no sitio certo…

E nós sabemos bem até que ponto aquele ano foi magnífico para mim, tanto a nível intimo e pessoal, como a nível profissional. No tempo em que tive a suprema honra de contigo lidar tornei-me um melhor ser humano e melhor técnico, aprendi tanta, tanta coisa contigo, meu querido amigo…

Pode parecer estranho, mas o teu sorriso mais belo para mim, aquele em que baixaste as defesas e me fizeste sentir um igual, foi quando acabei o curso e te convidei para o meu jantar comemorativo. Tu apareceste, estendeste-me a mão e com um sorriso de igual para igual me disseste “Parabéns Miguel” e por um instante eu senti-me alguém igual, e sabe o deus que não tenho o quanto tal foi importante para mim este sentir.

Depois…bem depois deixei que me talhasses o futuro e seguia-te por todo o lado, começando o pessoal a gozar em surdina que eu era “um João júnior” e maior honra não me podiam dar ao comparar-me contigo, o maior dos meus Mestres a seguir ao meu Avô.

Graças a ti tornei-me mais humano, deixei os meus mundos e apercebi-me de um mundo que eu renegara mas que nunca deixara de ser meu, graças a ti tornei-me parte desse mundo, graças a ti, e nunca mais o deixei nem irei deixar, graças a ti, meu Amigo, meu Irmão, meu Mestre.

Até que o mesmo destino que nos juntou nos separou para sempre no dia em que desapareceste.

Sem ti fui e senti-me abandonado, e uma das razões de nunca mais ter trabalhado numa área na qual me vaticinavam um certo e promissor futuro, foi principalmente por razões pessoais que não interessam nestas linhas, mas também porque partiste, porque se tivesses ficado entre nós eu seguiria certamente (apesar dos muitos obstáculos que outros e eu próprio puseram à minha frente) o caminho que tu querias, pois ao mesmo tempo eu tinha tudo para tal, e ao mesmo tempo tinha nada…

Mas sobretudo penso que terias orgulho de me ver hoje, no homem que me tornei e no futuro escritor que poderei ser, pois até nisto tu me ajudaste, camarada…

Desde que desapareceste já via a morte olhos nos olhos demasiadas vezes, mas perante ela agi sempre com a minha frieza natural e a frieza e raciocínio frio, mas humano, que me ensinaste a ter.

Cresci Mestre, hoje se calhar sou o homem que um dia vistes a nascer mas que desejavas que eu fosse, não tendo contudo tempo para ver esta espécie de larva sair do casulo onde esperavas que eu saísse para me tornar em alguém Maior.

Tenho imensas saudades tuas, nunca deixei de as ter e sempre terei, pois tu ainda me fazes uma falta que nem queiras imaginar…

E agora, ao fim de vários anos estou a pensar em voltar, voltar e prolongar o teu legado infinito de infinitos conhecimentos, os quais só sorvi uma ínfima parcela, mas penso que serão suficientes para não envergonhar a tua enorme herança profissional e pessoal, pois, meu caro, Tu sem dúvida fazes parte dos Eleitos.

E foi por isso que hoje tive que ocupar este espaço em branco com a tua memória e recordação de tempos que sem dúvida foram os melhores da minha ainda breve vida, em parte graças a ti, meu enorme Mestre!

Ao João G. 1959(?)-1999