Numa aula...

Numa aula de evolução darwiniana, sobre o acaso e a necessidade, seleção natural e coisas assim, uma aluna me indagou a respeito do ateísmo, ao qual essas idéias acabavam nos conduzindo. "Professor, caso não exista Deus algum, que nos olhe, como fazer para, todo dia de manhã, quando acordamos, preencher essa sensação de vazio que a gente passaria a carregar." Sugeri que ela lesse “Ter ou Ser” do Erich Fromm, “As duas saídas para o mundo terrestre” deTeilhard de Chardin, Milan Kundera em "A Insustentável Leveza do Ser", ou “Ilusões” do Richard Bach, ou, ainda, “Deus: um delirio” do Richard Dawkins e depois viesse falar comigo. No entanto, assim, de imediato, não a deixei na mão, pelo contrário, a amparei. Disse que só o vazio é que o enxerga assim, vazio. É uma questão de projeção, refletindo o vazio de quem vê, naquilo, a sua falta de cheio. Falta de cheio, claro, de quem vê, não daquilo que é visto. Por isso mesmo Nietzsche nos alertou sobre o perigo de olharmos abismos muito de perto, pois ele também estaria nos vendo. Nos vendo nada, óbvio, pois abismos não enxergam, eu disse a ela, mas são perfeitamente capazes de abrir certos olhos dentro de nós, antes fechados ou vendados pelo nosso receio em não aguentar o impacto da imagem. Disse a ela também e, claro, toda classe ouviu, que todos eles, ainda jovens, ainda carregavam vários pares de olhos ainda fechados, pois amadurecer era isso, ir abrindo-os aos poucos, par e par, sem pressa, sem queimar etapas, pois a precocidade na abertura de um par compromete a interpretação da visão do par seguinte. Mas que eles fizessem isso, devagar, mas com coragem. Se esse processo os levasse a ser ateus, muito que bem, pois foi uma consequência concreta, processual, alicerçada no amadurecimento gradual, não volátil e passional. Se tal processo, no entanto, os levasse a algum tipo de religião, muito que bem também, pois descobriram um sentido concreto, no etéreo por elas oferecido. Propósitos concretos, afinal, é tudo que, sem radicalismos, o homem precisa. Sem radicalismos, pois eles, os radicalismos, não passam de olhos fechados ou que se abriram muito cedo, não entendendo o que viam, forjando interpretações equivadas. Eu os alertei, também, a esses excessos da informação do mundo moderno. Disse que eram perigosos àqueles que quisessem confundi-los com cultura, sabedoria ou qualquer coisa parecida. Deveriam ser usados como ferramentas, não como vigas-mestras de alguma construção. De que adianta uma chave de fenda, se você ainda nem amadureceu seu parafuso? –perguntei. Talvez seu processo de formação, gradual e não precipitado, com o devido tempo para ouvir sua alma, lhe leve aos pregos e não aos parafusos. E ai, o que você faria com uma chave de fenda, nesse caso? Leiam bastante e sem pressa sobre parafusos e pregos, comparem os dois e vejam qual deles melhor se encaixa na sua obra, meta de vida e valores. Dai sim, depois de uma certa segurança, é que se buscam os martelos e chaves de fenda que inundam a internet. Enquanto isso, procurem evitar influências de pessoas que colecionam sites de martelos e chaves de fenda, morando nas barracas de lona de suas metas de vida. Deus é o quê? Parafuso, prego ou o quê? Nenhum deles? O que é, então? Não é? Não importa, você vai saber. Desde que amadureça com calma, lendo muito os dois lados e escutando sua alma, você vai saber. Depois de saber, procure não impor tal sabedoria aos outros, pois isso é arrogância, não combina com sabedoria. Sabedoria é mesmo assim, cada um tem a sua e não chegou lá à toa. Ficaria muito bravo se você tentasse lhe impor a sua. Pelo contrário, trabalhe melhor a sua, conversando com ele. Não permita, também, que ele lhe imponha a dele, mas aceite sua conversa, pois ele também precisa evoluir. Conversem sempre, ok? Sobre tudo e sobre todos, pois rótulos escondem o verdadeiro valor dos conteúdos, conclui.

PS: Gosto de lembrar dessa aula. Ela se deu no final do ano passado e gostei da idéia de dividi-la aqui, com quem quer que a leia.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 29/10/2010
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