Alma, lamentações ao anoitecer

"Eu sei o que se passa em sua mente.

Eu posso sentir o calor, as chamas que emanam de seu hálito."

E assim, enquanto Alice se contorcia sobre a cama, buscando um alívio para seus impulsos lamentáveis, ele ficava de pé, sobre o lustre do teto.

O negados conhece como ninguém as artes do auto-flagelo.

E como tal, não para se divertir, espera que ela termine exausta por sobre os lençois, estes já amarfanhados. Quase nojentos.

Ele não brinca com seu pai. Ele quer apenas provar que este mundo agora é dele. Assim, busca em Alice, o que buscou durante seu tempo por aqui: verdades que não levam para o céu.

Lá fora, enquanto a chuva diminui seu volume, Heitor aguarda ansioso o farol se abrir. Ele, é necessariamente a nulidade. Preso em seu terno de qualquer cor, pensa em seus filhos. Em qualquer coisa que o liberte de querer. Mas ao seu lado, o negador incita-o. Fustiga sua alma com o desejo da matéria. E assim, envolto, imerso em sua própria cobriça, não hesita em, mais tarde , roubar como roubam os civilizados.

A noite despenca das alturas mais inimagináveis sobre a terra, e o que já era sem graça, cinza, agora é negro, ligeiramente rôxo, por causa das luzes da cidade. Por causa da poluição.

E pelos bares, vou vendo almas que cantam, almas que bebem, fumam, se contorcem.

No porão do bar amarelo, onde provavelmente já reinou um pouco de elegância, vejo o negador apertar os nós. Nós que prendem o feminino corpo de Oberon. Este, um invertido insólito, se compraz com nós e agulhas, suspenso , torturado. Ao seu ouvido, o negador pronuncia com palavras imateriais, poemas sobre mães e agregados. Ninguém percebe.

Logo acima, no palco, onde os pingos de chuva vez por outra se apresentam, está a cantora. Esta, uma decadente experiência do ser humano, canta coisas tão ininteligíveis, que é alvo de copos, xingamentos e olhares de desprezo. Em sua mente, apenas o filho que foi para a lata de lixo. Mas que retornou em seus sonhos, coberto de placenta, pedindo um pouco mais de Wisky.

O negador não se diverte. Ele nunca se divertiru. Ele não quer é estar sozinho. Não no dia em que tiver de enfrentar a sua própria condição de marionete.

Por isso, sobre a cama de Alice, agora, dorme um corpo de homem. E ela, observa constrangida. É a culpa. É o tempo de todas as coisas. A imperfeição do ato de ser livre.

Heitor, furioso, não percebeu que nem todo o dinheiro do mundo, poderia salvá-lo de sua condição de nulidade. Nada é menor que o homem inaceitável.

E eu posso observar tudo isso, dada a minha condição de semi-humano. Meio humano, meio nada.

Enquanto o negador percorre as ruas, com sua camisa verde e seus sapatos de couro italianos, fica um rastro. Um cheiro de perfume com notas amadeiradas. Sãndalo. Ele não puxa o gatilho. Ele não trai. Ele não produz a fome. Ele apenas, sutilmente, sugere. Assim como as senhoras decadentes sugerem aos seus netos "Parsifal", que comprem esta ou aquela égua reprodutora.

Assim, como numa sinfonia tecida com muita covardia, muito cinismo, é que o homem pode encontrar sua razão de ser. Porque nada está a salvo da verdade.

Nem mesmo o negador, que provavelmente, seja o único ser terreno que aceita seu propósito.

A qualquer momento irá amanhecer. Sem dúvida. Porque as pessoas gostam da idéia de um dia renascido.Mas a manhã nada mais é, que um prolongamento ilumindado da noite. Esta vasta e mal-cheirosa noite....

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 07/10/2006
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