Crônicas suburbanas


Eu nasci na periferia de São Paulo em um bairro chamado São Miguel Paulista, extremo leste da capital bandeirante.
Quando criança jogava bola, soltava pipa, e passava o dia na rua, sem medo de violência, o bairro era quase uma cidade do interior, todo mundo se conhecia, havia respeito entre as pessoas.
Mas com o tempo as drogas substituíram a cuba libre, e o traficante começou a reinar, depois disso a violência dominou o bairro.
Embora não sabendo usar armas, a maioria dos homens passou a tê-las em suas casas.
Então os ladrões invadiam as residências para roubar as armas dos cidadãos de bem, e assim a coisa virou uma bola de neve rolando morro abaixo.
Dia desses um amigo meu veio com uma história que ilustra bem o que estou falando.
Robson (meu amigo) acordou durante a madrugada com o barulho de passos no telhado, olhou para o lado e viu que sua mulher dormia profundamente, levantou-se com cuidado e se encaminhou para o quarto ao lado, onde dormiam suas duas filhas.
Depois de confirmar a segurança de suas meninas, pegou sua lanterna em um ponto estratégico da cozinha e se dirigiu com cuidado para a varanda que dava acesso ao telhado.
A noite clara devido à lua cheia denunciou a silhueta do rapaz que se assustou ao ver o meu amigo surgindo no telhado, mas quando o meliante tentou correr, Robson gritou:
-Para, para, se não eu atiro.
O mal feitor parou e ficou estático com as mãos paradas no ar.
-Por favor senhor, não atire.
Passaram-se infinitos segundos com aquela cena congelada, se fosse uma novela o capítulo acabaria ali.
-E agora? - Pensou - O que eu faço? - Continuou em seu dilema Kafkiano. - Se esse cara estiver armado eu to fudidu, num tenho nem um alicate de unha pra me defender.
-Vira e vem pra cá e bem devagar. Finalmente ele falou, fingindo estar armado.
- É só um menino.
Pensou Robson ao ver melhor o invasor.
- O que está acontecendo ai?
Berrou seu Severino - açougueiro - que apareceu no quintal dos fundos só de cueca e com um revólver na mão.
E assim foi acontecendo sucessivamente, do lado esquerdo, em cima do muro já se encontrava Zé louco - um policial da guarda municipal que o próprio apelido já dizia sobre sua sanidade.
Zé louco empunhava uma arma quadrada que brilhava com o reflexo da lua.
Do outro lado e em cima do telhado de sua casa, João pereba - vendedor de caldo de cana na feira - apareceu com um facão, enquanto seu Adolfo (pai de Robson) também saiu de sua casa que ficava abaixo da de Robson ao mesmo tempo em que suas netas começavam a chorar assustadas.
- Tem um ladrão aqui em cima. - Gritou Robson.
- Mete bala nesse vagabundo.
- É só um garoto!
- Ladrão?
- Garoto um cacete?
- Onde?
- Linchaaaaa!

As vozes se misturavam enquanto o tumulto crescia, Robson ficou preocupado, pois sabia que em segundos todos estariam lá em cima e a vida daquele garoto não valeria nada.
Mas Robson foi retirado de seus pensamentos pelo estampido de um tiro.
Ainda bem que Zé louco é um puta cegueta - pensou meu amigo, deixando escapar um sorriso.
-Corre moleque, se não eles vão te fuder. - Falou Robson apontando para o lado em que o garoto deveria ir, o menino ainda titubeou um pouco, mas Robson gritou.
-Vai cacete, cê quer morrer?
Enquanto o garoto corria para longe, os gritos e tiros aumentavam, até seu Adolfo, que nunca tinha usado sua garrucha de dois tiros e uma carreira, atirou.
-Parem de atirar, sou eu, o Robson.
Momentos depois o ar estava impregnado com cheiro de pólvora, e por alguns segundos o silêncio reinou, mas só por um instante, pois logo a bagunça recomeçou.
A vizinhança toda agora se encontrava dentro ou cima da casa de Robson.
Dona America (mulher de seu Adolfo) preparou um cafezinho fresco e os compadres e comadres, amigos de uma vida inteira amanheceram o dia, conversando e relembrando velhas historias de quando a vida era mais calma e o bairro onde tinham criado seus filhos era um lugar de paz.



Paulo Siqueira Souza
Enviado por Paulo Siqueira Souza em 28/10/2010
Código do texto: T2583834
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