Crônicas da nova era IV - O mito de Sísifo
Conta-nos o romancista argelino Albert Camus que o grego Sísifo teria instruído sua mulher a não cuidar de seu corpo quando ele morresse; que o deixasse jogado onde quer que houvesse morrido, uma vez que o corpo, liberto da alma, já de nada valia.
Reza a lenda que a mulher obedeceu à bizarra instrução, o que teria consternado até os deuses, de modo que foi permitido a Sísifo retornar do hades, o lugar para onde iriam as almas dos que já morreram, com o intuito de punir a esposa por praticar ação tão repulsiva.
Tendo retornado e punido a mulher, Sísifo fica obrigado a voltar ao hades, mas se sente incapaz de abdicar do calor do sol, e de todas as delícias que reencontrou nesse mundo, o que constrange os deuses fortemente, e o ordenam que não mais demore e volte imediatamente sob pena de sofrer castigo terrível, mas mesmo tal ameaça é insuficiente para fazê-lo retornar ao lugar onde deveria estar. Então os deuses enviam emissário terrível que o leva a força para o hades.
Voltando ao lugar das almas, Sísifo recebe seu castigo nefasto: deverá, por toda a eternidade empurrar uma pesada rocha até ao cume de enorme montanha, só para fazê-la rolar até o outro lado do monte, obrigando-o a retomar seguida e sucessivamente toda a desgastante jornada, numa tarefa completamente inútil.
É no momento em que o rochedo rola montanha abaixo, quando Sísifo consegue aliviar momentaneamente o corpo, que Camus o avalia. É nesse momento, em que seus músculos não se retesam pelo esforço e ele se permite erguer a cabeça e contemplar qualquer coisa que não seja o rochedo que se vê compelido empurrar, que ele nota o quão lastimável é seu destino; é quando ele percebe toda a inutilidade de seu enorme esforço, e, no entanto, deve descer até a rocha para tornar a empurrá-la até o cume continuamente cumprindo assim o seu fado.
Muitos hoje reclamam da utopia que proponho, a chamam de irreal, absurda, e propõem, as multidões um castigo similar ao do desobediente Sísifo: propõem que as multidões sejam contratadas para fazer atividades inúteis com o único propósito de justificar uma fonte de renda. Parecem ver absurdo na remuneração livre, e sustentar a imposição de uma tarefa constrangedora e absurda como se o absurdo pudesse ser justificativa para algo. Advogam para as multidões um castigo tão inútil e desgastante quanto o que teria sido imposto pela desobediência a deuses irados, e isso sem nenhum motivo.
Penso nos estranhos sentimentos que poderiam levar qualquer pessoa a condenar grande parte da humanidade a castigo tão desconcertante e brutal.