DESABAFO DE UM RIO

Quando eu podia fazia assim:

Descia embriagado, de alegria, cheio de vida;

Serpenteando, pulando qual touro em festa de boiadeiro;

Minhas águas limpas e férteis serviam de berço e morada para muitos habitantes.

Muitas bocas usufruíam diretamente do que eu tinha,

Mas infelizmente, não cuidaram de mim,

E não sei o que pensavam a meu respeito.

Será que imaginavam que eu permaneceria inalterável mesmo quando só pensavam em si?

Ou será que nunca desejaram o que estão colhendo como resultado do descaso com o meio ambiente?

Eu também faço parte disso, e por pouco não morri. Ou eles não sabem que tenho vida e que um depende do outro para viver bem.

Muitos outros irmãos meus morreram. Eu escapei, mas não sei por quanto tempo...

Quando às minhas margens chegaram às indústrias,

Ou usaram parte do meu leito para construir hidrelétricas,

Quando minhas várzeas foram tomadas,

Foi aí que começou meu suplício...

Vi minhas águas ficarem turbas,

Tomadas de lixo, escória que ninguém quis.

Vi peixes desaparecendo,

Vi pescadores frustrados,

Vi gente morrendo... Não fui o culpado!

Vi lavadeiras sinalizando-me um: Não.

Vi crianças rejeitando-me; Já não servia pra encantar seu mundo infantil.

Vi ancião de semblante tristonho, relembrando com saudade os tempos de outrora...

Vi jovens não acreditando nas imagens fotografadas; pareciam estórias de pescador, cheias de acréscimos ou inventadas.

Poluição... Exalo por quase todo meu corpo.

Poucos pedaços escaparam ao estrago...

Mas ainda ardentemente acredito que pode haver um amanhã...

Há pessoas que por mim estão lutando.

Elas tentam impedir que eu me torne um esgoto quilométrico, fétido, infértil, morto...

Por isso, imploro, peço e grito:

Sou um rio agonizante, deixem-me viver!

Só preciso de mais chance.

Não temo reconhecer:

Sou dependente de você.

Ouçam isso, mas com muita atenção:

Alguns braços soltaram em meu leito

Muitos alevinos nascidos em cativeiros.

Desses cuidei com afinco,e cresceram,

Causaram espanto em quem me tem por berço canibal.

Como se enganaram! Reconheceram isso?

Esqueceram que eu ainda amo, alimento, refrigero, acalento e brinco...

Faço o que todo rio tem prazer de fazer:

Recebo de corpo aberto todos que a mim vem.

Muitos moradores voltaram a se alimentar

De petiscos que encontraram em alguns trechos...

Minha nascente e foz acreditam na sensibilidade de quem um dia

Quase me fez parar de respirar.

Eu tenho tanta coisa para lhes falar,

E outras mil para lhes dar.

Tantos momentos para lhes transmitir,

Tantas lembranças vocês terão,

Tantos segundos de puro prazer,

Tantos sonhos... Vou poder realizar.

Só preciso que me ouçam e me respeitem,

Enquanto ainda consigo lutar pela minha vida,

E pela vida de quem de mim é depende.

Vocês fazem parte dos dependentes, e nem se dão conta disso.

Cordialmente,

O Rio.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 28/10/2010
Código do texto: T2583529
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