VERBO COISAR.
Faz mais ou menos três anos que começamos a visitar mais freqüentemente nossa terra natal BOM CONSELHO, no interior de Pernambuco. Nessas idas e vindas, começamos a nos envolver com outros assuntos, principalmente na área da educação e política. Retomamos vários contatos perdidos no tempo e conseguimos reavivar relações sociais e familiares que o tempo houvera colocado em “panos mornos”. Minha terra tem o codinome de CIDADE DAS ESCOLAS. Houve um tempo em que sua força de trabalho era preponderantemente de professoras primárias. Na década de 70/80, casar com uma professora era um bom “negócio”, digamos assim. Grosso modo, era desta forma que a cidade mantinha sua economia funcionando, diferente de hoje em que o progresso, definitivamente, chegou por lá levando consigo outras profissões. Mas a educação continua forte e fazendo jus ao codinome mencionado. Ao “coisar” estas considerações, sentimos vontade de socializar com todos quanto a escola é viva na minha terra. “Coisar” (escrever) bem por lá é regra e essa fama tem reconhecimento em vários lugares do Brasil, principalmente no Recife. Modestamente, reconhecemos que “coisamos” razoavelmente bem graças a estrutura lingüística que trouxemos. Detalhe: a escola pública de lá funciona bem, mesmo considerando que no passado foi, consideravelmente, melhor. Contudo, essas idas e vindas à terra natal, deparam-me com uma ilha de contradição na área educacional. Por isto estou “coisando” estas considerações, pois ainda não consegui tirar da cabeça a imagem de MESSIAS. Ele é um menino de 13 anos, mas que ninguém lhe dá mais do que dez. Aspecto raquítico, com indícios de desnutrição, avesso a tomar banho, dentes careados, roupinhas simples e nem sempre limpas. Estuda numa escola pública, mas a impressão que temos é que ainda freqüenta por conta da bolsa escola e da merenda. Messias se aproximou da nossa casa porque ela fica no caminho da sua residência. Numa das nossas estadas ele viu a casa aberta se aproximou. Simpático, do bem, logo a gente simpatizou com ele também. Sentindo-se acolhido, todo tempo que a gente (minha família) está em Bom Conselho, ele se aproxima. Algumas vezes almoça e janta, faz alguns “mandados” e depois vai pro mundo “coisar”. Mas o que mais nos impressionou em Messias foi a capacidade que ele não tem para usar os verbos. Por isto COISAR é pra ele como se fosse o ar que respira. Quando ele chegava lá casa e a gente perguntva alguma coisa, logo “coisar” entra nas suas respostas. Ele não brinca, “coisa”; ele não estuda, “coisa”, ele nada faz, mas tudo “coisa”. Dá-nos a impressão que não deve freqüentar a escola e se o faz, esteja havendo alguma falha no processo. Messias consegue ser meio onipresente. Por onde a gente anda na cidade, seja dia ou noite, cedo ou tarde, lá está ele. Qualquer festa, lá está ele. Outro dia, descendo a ladeira da feira, lá vem Messias com um carro de mão “coisando” a feira de alguém. Esse hábito é comum na minha terra. As pessoas vão à feira, e os menores, conduzindo carros de mão, levam-nas às residência das pessoas que pagam por isto. Ele não deixa de “coisar” também na feira. Também “coisa” carro. Digo, é flanelinha. Se ele for a padaria comprar o pão, vai logo dizendo que “coisou”. Arrisco-me a dizer que o vocabulário dessa criança não deve chegar a cinqüenta palavras. Exagero a parte, Messias é um garoto bonito, cabelo liso, riso aberto, honesto. Inteligência? Muito pouca. Ele vive numa casinha modesta, cuidado por um irmão mais velho que sobrevive de fazer bico. Provavelmente “coisando”, roçando mato quando aparece. Sua mãe tem problemas sérios de saúde e vive a base de remédio controlado, adquirido na rede SUS. Esse roteiro familiar, provavelmente, seja responsável pelas dificuldades cognitivas de Messias. Com isto seu rendimento escolar é quase nenhum, mas ele não desiste. Todo dia à tarde ele vai à escola, pois lá, certamente, além da merenda, deve ter um ambiente social acolhedor. Não sei se ele “coisa” na escola. Talvez sim, pois me surpreendeu dizendo eu “DI”, querendo dizer “dei”. Corrigimos. Mas será que seu “HD” gravou? Pra completar essa saga messiânica, ele desta vez apareceu com os dentes sem cárie. Falou que foi uma tia quem “coisou”. Tudo indica que deve ser dentista, mas se de fato for sua tia, nossas inquietações só se multiplicam.
Desta ultima vez, quando já estávamos no carro retornando para Recife, ele apareceu. É assim, ele aparece do nada. Perguntou quando a gente voltava (na forma dele de falar), como que querendo dizer que a gente vai lhe fazer falta. Na véspera desse retorno, nos pediu dois reais para comprar uma lingüiça para o almoço. Uma coisa é certa: na medida do possível, seu irmão cuida dele. Faz demais, pois certamente padece da mesma falta de estrutura familiar de Messias.
Pergunto-me: a educação de qualidade da minha terra está “COISANDO”? Ou se trata de uma questão localizada? Será que a escola de Messias já procurou saber da sua família? Será que a professora de Messias já teve acesso ao seu acervo vocabular?