Dez Motivos Para Não Tirar o Rabo da Cama

Dedico este texto para os meus companheiros de trabalho: Marcelo, Carol, Dri, Su e Bruno.

1) Quando eu trabalhava de entregar lista telefônica ficava sonhando com um trabalho mais suave. Saía de casa bem antes do sol nascer e não tinha hora pra voltar. E entre o momento que eu saía de casa pro momento que eu voltava eu me fodia de tudo quanto era forma possível. Ia entregar a lista em casa de senhoras que regavam suas plantinhas e me ofereciam almoço; entregar nas mansões do Morumbi e era atendido ou por empregadas prepotentes ou por louras deslumbrantes e bem sucedidas - e humildes por demais, por incrível que pareça, ao contrário de suas criadas de cabelo pixaim. É, entregava em prédios comerciais e os recepcionistas assinavam e me olhavam com um pouco de pena, compaixão, nojo, desprezo, dó. Era um momento que misturava bastante sentimento, sabe? Eu girava nos calcanhares e voltava pro sol de trinta graus e para as minhas oitenta listas de dois quilos e meio cada e olhava a ladeira de paralelepipedos que tinha que subir batendo de porta em porta, escapando de mordidas de cachorro, de atropelamentos, de mais olhares de compaixão com um pouco de impaciência e o recepcionista ficava lá, sentado sob o ar condicionado, agasalhado, com seus dentes brancos e cabelo cheio de gel, sorrindo, feliz, já nem se lembrando da minha existência, do entregador de mãos sujas, suado, com olheiras fundas e língua seca. Sem contar a galera que trabalhava comigo que gostava de "dar um astral" dentro da Kombi sempre que possível, se é que vocês me entendem.

As coisas mudaram um pouquinho.

2) Já falei em outros mil textos que trabalho sob o ar condicionado, sentadinho, cercado de mulheres que ficam mexendo no meu cabelo e com a Carteira de Trabalho muito que da assinada e com algumas promoçõezinhas carimbadas. Mas não é o Paraíso propriamente dito - nem se comparado á (nota: nunca sei quando usar "à", "a" e "à", tá?) ralação que as ruas oferecem para os entregadores de lista telefônica.

(Perdi um pouco do foco do assunto que queria abordar).

A idéia veio com uma frase/pergunta que o meu brother Marcelo soltou outro dia:

- Velho, nós é que somos sádicos demais ou é o mundo que favorece a piada?

3) O elevador me atrasa em dois minutos. Me recuso a subir a escada logo cedo de estômago vazio. Entro no setor e minha chefe me dá bom dia com ironia batendo com o indicador no pulso da outra mão, onde deveria ter um relógio. Dou de ombros e bato o meu ponto. Cumprimento um ou outro com um meneio de cabeça ou com um aperto de mão. Não consigo dar "bom dia" porque a minha concepção de um dia bom é acordar sem despertador, tomar café e não fazer nada que não queira. Daí vem sempre aquela moça gente boa me abraçar. Me abraça, elogia, aperta, beija no pescoço. Eu ficaria feliz se ela fosse - como posso dizer? - "aproveitável". Ela tem o coração bom, mas exagera na efusividade. E no perfuminho de rapariga que ataca a minha alergia também. Aí tem a outra que me dá beijo com bafo de café e me enlaça a cintura com o braço, deixando o cotovelo em cima da minha bunda. Minha chefe olha torto, porque além de chegar duzentos segundos (!) atrasado eu fico fazendo social - sendo que eu só queria ir no banheiro olhar a cara de derrota, beber um copo d'água e voltar pra minha senzala particular. Faço isso. Aí chega a rapazeada e começa:

- Caralho, peguei metrô com uma mina hoje! Moreninha assim, do cu arrebitado, de blusinha branca, caralho, deu vontade de comer ela ali mesmo.

- É? - Pergunto sem muito interesse, porque SEMPRE vai ter uma mulher no metrô que vai roubar a cena, os olhares, tudo e, sinceramente, não me interessa saber a descrição dela por que eu nunca com a minha imaginação vou conseguir chegar perto do que fulano ou ciclano me falam.

- Caralho, e eu? - entra um outro na conversa - Cheguei em casa ontem e tive que fazer uma homenagem pra loira que eu peguei busão ontem. Eu lá sentado e ela com aquele bucetão na minha cara! Ainda bem que ando de pochete, senão...

Como não sou santo e também tenho sangue correndo nas veias, dou minha contribuição no assunto. Às vezes sou tão podre quanto eles falando. Às vezes, por ter muito convivio com mulher, desprezo os homens, o jeito que falam, a gana que têm por sexo, por falar de sexo e de mulher como se fosse um mero objeto, um mero buraco pra gozar dentro. Tenho vergonha de ser homem e fazer parte dessa palhaçada.

4) Abro as três caixas de e-mail que tomo conta e ligo os SEIS aparelhos malditos que me pertencem - 3 Nextel e 3 Celulares. Vinte e-mails em uma caixa, onze na outra e vinte na outra. Começo a ralar o cu na ostra. A cada três e-mails que eu respondo, chega um. A cada oito, chegam sete. Não manjo de matemática, mas quando vou ver estou com o humor definhando e com os dedos moles de tanto digitar. E o telefone celular toca e o Nextel apita. Aí chega um pessoal novo. A pessoa que está "ministrando" o treinamento deles senta atrás de mim. Então, eles fazem uma rodinha e começam a falar de tudo. Aí fica mais ou menos assim: eu lidando com um conglomerado bancário a nivel BRASIL querendo o meu pescoço com vinte conversas paralelas vindo todos os lados e invadindo meus tímpanos sem pedir licença.

- Ai, quando eu casei eu pesava não sei quantos quilos. Ai eu engordei não sei quantos. E agora peso não sei quantos. O seu namorado malha? Quanto tempo estão juntos? Ai, desculpa, não entendi esse procedimento, me explica de novo? Quem? Quem é sindico da massa falida? O que é uma restrição de Benefício Tributário?

- Bom é quando ela tá por cima ai você fica chupando os peitinhos e dando dedada no botico. Isso, assim mesmo hahaha ai depois você tira ela do colo, pega pelo cabelo fala "vem cá sentir seu gostinho vem".

E no rádio o cara chama e eu tenho que colocar na "fila". "Fila" é um programa onde cadastro os dados do desgraçado e a parada fica na ordem de cadastro, bonitinho - como se fosse uma fila mesmo. E o cara chama:

- Na escuta?

- Na fila!

Passam dois minutos.

- Alguém na escutaaaaaaaaa?

- Na fila! (notem a exclamação)

Tem coisa mais irritante do que o bipe que o Nextel faz? Eu li em algum lugar que essa merda é GPS de cretino: é só você ouvir o bipe e olhar de onde ele veio e lá estará um cretino. Faz sentido. E, infelizmente em última análise, sou Cretino Profissional. Triste ironia.

- Oi? TEM ALGUÉM NA ESCUTA?

- Na fila!!! - eu respondo e quando tiro o dedo do botão acontece o de sempre: - SUA FILHA DA PUTA PIRANHA ESCROTA VAGABUNDA DO CARALHO, TÁ COM UMA ROLA ENFIADA NO OUVIDO? - e jogo a porra do maldito aparelho atrás da CPU e xingo mais um pouco.

Nisso, faz-se um silêncio de alguns segundos. As pessoas me olham. E a puta que mais fala, a piranha que mais tem assuntos desinteressantíssimos de sua vida de esposinha (PS: leiam- o texto "As Esposinhas", da Tati Bernardi e me entendam melhor) que só mete de papai-e-mamãe e pesava vinte quilos à menos antes de responder que "sim" na frente de um padre e de uma multidão entediada, selando ali o seu destino de "esposinha" chata-babaca-do-caralho; enfim, é ela que interrompe o sagrado silêncio e comenta:

- Nossa, como você está estressado!

A luz do Nextel acende, ele bipa e a pessoa do outro lado, pela terceira vez em menos de dez minutos, pergunta:

- Alguém na escuta?

5) E-mails. Diariamente eu penso no desperdício de tendões a que me submeto em troca de pus pro meu futuro câncer - sim, não é a doença dos reprimidos? Reprimo diariamente a vontade de chutar os dentes de pelo menos cinco que cruzam meu caminho. Enfim. No dia seguinte, quando faço uma contagem por cima na caixa de saída, vejo que respondemos mais de três mil (!!!). Depois do chilique e de atender a toupeira que ganha dez vezes mais do que eu e escreve "revizão", volto para os e-mails. Tem bastante. Olho para os lados. A pessoa que deveria me ajudar está encostada na lateral da mesa, cochilando - E algumas horas mais tarde bato o olho na planilha de produção do ser humano e ela "produziu" mais do que eu. As duas primeiras horas passam infernalmente tranqüilas e então meus amiguinhos chegam pra me ajudar e alivar um pouco a minha tensão.

6) O Senhor Efusivo se pendura na escada para pendurar a decoração de halloween - a mesma dos últimos dois halloweens. Ele cai da escada, em cima da tiazona que adora reclamar por tudo e por qualquer coisa. O cara do Nextel reclama de uma pendência inconcebível que um analista gerou. Eu vou até o analista e ele solta: "Ah, eu nem tchum que não era isso". Ai eu penso: filho da puta, você é pago pra "nem tchum mesmo, não é?". Aí o cara do Nextel reclama que está enviando o documento e a proposta sempre volta com erro. Estão pedindo nota fiscal - em caps lock - e o cretino fica mandando o CRV do veículo. São dois documentos bem parecidos, vocês não acham? Daí o Outlook fica lento e o acúmulo de dúvidas e encheção de saco da área comercial alcança patamares estressantes e exorbitantes. O papo sobre como foder uma mulher continua. Os chefes me trazem papéizinhos com mais serviço. O chefe do chefe fica olhando e acelerando todo mundo. Estressando todo mundo. E enquanto alguns fritam o cérebro e trabalham com a impressão de estarem com um nabo enfiado no rabo, o filho de uma boa moça fica circulando sorrindo falsamente e fazendo piadinha, dando ordem aqui e ali. O bigodão enfia a mão nas calças, coça o bicho e depois coloca a mão no mouse. A senhora que divide a mesa com ele fez o mesmo logo cedo. Sinto fome e vontade de cagar. Sinto azia e sede. Sinto sono e tédio. Sinto falta de pensar e de escrever. Não posso ouvir música. Mas posso ouvir as pessoas em pé ao meu lado falando do Tico Santa Cruz. Sou advertido se me pegarem com UM fone enfiado no ouvido mas tenho que ficar ouvindo as virulentas discussões sobre a última rodada de futebol ou último paredão do BBB. Enquanto isso os e-mails chegam e o rádio toca:

- Alguém na escuta?

E dois, dos três celulares, começam a tocar ao mesmo tempo. A pessoa que deveria nos ajudar está ocupada jogando Tetris ou fazendo trabalho da faculdade. Então pedem pra pararmos para fazer reunião. "Reunião", em outras palavras, significa "realinhar determinados procedimentos por que vocês fizeram merda, você só sabem fazer merda, caralho, sempre desmotivados, estressados, porra, galera, força, vamos. Tá, eu sei que a gente nunca faz uma reunião pra elogiar os trilhões que vocês fazem o Banco lucrar todo santo mês, mas poxa, não façam essa cara quando eu peço pra vocês pararem por cinco minutinhos".

7) Reunião. O ar dramático de uma reunião que vai gerar esporros gera me dá vontade de sufocar risadas. Porque o cliente sempre tem razão. A empresa sempre tem razão. Nós somos a baratinha que roda no nobre linóleo azulado da empresa, pronta para ser esmagada a qualquer momento pela sola do sapato do chefe que não sabe articular uma piada engraçada, tem cara de cu virado do avesso e nunca chupou um clitóris na vida - apesar de ser casado. Uma bomba estourou! Os gerentes da área comercial do banco cairam na alma dos gerentes da área administrativa do banco. A bronca foi trocada e ligações com conferências foram feitas e adivinha pra quem sobrou? "Eles estão alegando que vocês estão muito ríspidos, secos". Estranho. "Mas vocês não podem dar 'tchau-tchau' ou mandar beijo. Mesmo que a pessoa do outro lado da linha mande beijo, vocês não podem". Quem entende? É tudo uma grande piada articulada por chefes que perderam a virgindade depois do casamento, na lua-de-mel no hotelzinho caro em Minas Gerais, após ter ficado meia hora perdendo ereção tentando achar onde é o buraco por onde todos nós entramos e saímos; piada sem graça. A reunião transcorre como sempre: as baratinhas revoltadas e a pobre chefe imediata sofrendo as conseqüencias por estar sob a batuta de um cretino, tendo que ser a mediadora entre os Pobres Diabos e os Intocáveis. Por incrível que pareça, me simpatizo com ela. Me olha torto, me poda, me enche o saco, mas é gente boa pra caralho. A galera tremendo, com cólera no olhar e eu tentando não dar risada - sem muito sucesso - da criatura mais palhaça daquele lugar - e que por sinal também é chefe - que ficava fazendo careta ao fundo. A reunião acaba como sempre: tudo foi falado e tudo vai durar, no máximo, 24 horas. Voltamos pra mesa, cientes de que teríamos que ser mais delicados com os acéfalos impertinentes que sempre têm as mesmas dúvidas todos os dias. Mais delicados, mas sem poder retribuir um "abraço pra você também/beijos pra você também/tchau-tchau".

8) Na mesa, o inferno de sempre. Ficar lá, lendo "suspenção" e olhando a renda dos clientes. Um cara que em 2008 ganhava R$2000,00/mês em 2010 ganha R$15.000,00. O outro dá R$6.000,00 de parcela no carro. Parcela que é por mês. Por mês mensalmente e de trinta em trinta dias. E a gente, ganhando o quê? Reprimenda, mais trabalho, perfuminho de rapariga, vale-coxinha, bucetas vistas no metrô, jogo do timão, Lady Gaga, funk no ônibus, Radial Leste às seis da tarde com o sol se pondo e uma expectativa de vida deprimente e decadente, pois os nossos chefes são nascidos para chefiar; estudam em particulares, fazem cursinho, seus tios são chefes e os colocam lá, com o plano de carreira já traçado e todas as promoções são embustes maquinados em churrascos aos domingos, com as barrigas protuberantes de cerveja e merda aquecidas pelo carvão em brasa, picanha, praia, ele imenda o feriadão e não dá folga pra ninguém, ele usa casaco por cima da camisa social escrota e só dá bom dia quando lhe convém, pois ele está acima, ele chegou lá, ele casou, sua esposinha está em casa, a Madame Bovary do Século XXI está em casa no bate-papo da UOL com o nick de "Carente de Rola" enquanto o marido está, supostamente, dando duro no trabalho, quando o dar duro no trabalho dele é ficar circulando sendo a Imponência, a Onipotência, e sentar na sua salinha particular e responder e-mails, fingir que trabalha, sorrir pra quem é peixe grande e virar o rosto pra ninharia. A pessoa gera nojo por onde passa. Todos se perguntam como alguém pode dormir sabendo que tem duzentos que, se pudessem, o apedrejariam na praça e o arrastariam a cara no asfalto puxando pelas orelhas e o pendurariam no poste como fazem com o "Judas"; eu me pergunto e sei a resposta: ele não passa de um parasita que se alimenta disso. Por isso não o odeio. Simplesmente ignoro sua existência. Como a de uma barata nojenta.

9) Hora do almoço. Pego o elevador com a mulher mais gostosa de um raio de duas galáxias. Trabalho no terceiro andar. O elevador pára no segundo. A capacidade máxima é de oito pessoas. Já tem oito. Mas a preguiça ambulante do segundo andar pede pra "apertar mais um pouquinho" e se enfia no meio de oito pares de olhos que a fuzilam. A DEUSA encosta em mim. Discretamente olho pra baixo. É a maior bunda do mundo. Mas esqueço o mero detalhe porque o elevador desce esquisito com a sobrecarga. Não sei, mas me dá um certo receio. Quando ele pára no térreo, dá uns chacoalhões e eu fico imaginando o cabo de aço estourando e todos saindo de lá em padiolas, paraplégicos, só por causa de uma maldita endomorfa que vai morrer se descer dois lances de escada. No refeitório, aquele cheiro de marmita amanhecida misturado com o cheiro de pipoca (de queijo!!!) de microondas. Saio pra almoçar na troca de horário do pessoal que trabalha meio período. De tanto stress por pouca bosta, me dou ao luxo de ser um pouco sádico e fico reparando na galera. Tem uma que tem os dentes pretinhos e usa um óculos que deve ter uns vinte graus. Betty, a feia. Tem o grandão que parece o Snoop Dogg. É engraçado. Tem aquele que de frente parece que tá de perfil e de perfil desaparece. Parece uma espingarda com roupas largas. E anda gingando, todo malandro. Tem a bichinha que me olha e me dá engulhos. Tem o velho que usa calça leg (?) branca, Melissa e que tem dois dentes na boca. É uma visão, no mínimo, horrenda. A leg dividindo os amendoins na frente e enfiada no rabo atrás (óbvio). E é casado, o cidadão. E eu lá, jovem, com dentes em perfeito estado, solteiro, tadinho, desalentado, sofrendo dores de corno sem nem ter como ser corno! Tá, parei de falar assim, senão vou soar como preconceituoso e basta uma brechinha do tipo para virem os defensores da moral dar pitaco, não é? No restaurante, que custa o dobro que me pagam de vale alimentação (lembra que eu falei vale-coxinha lá em cima? Então). Chego lá, faço a montanha de comida de sempre e sento. É horário de almoço das funcionárias, que juntam duas mesas e ficam vendendo batom, esmalte, calcinhas e falando de sexo ou dos bons tempos na Bahia. Sento e começo a trabalhar o garfo e a faca. É um momento de paz. Chega a moça de sempre e faz a pergunta de sempre:

- Vai beber o quê?

Eu fico pensando no que beber. Suco de uva? Acerola? Abacaxi? Ou uma Coca-Cola? Guaraná? Água? Que dúvida!

- Hein? - Ela insiste. Quer voltar logo pra escolher uma calcinha nova.

- Ainda não sei - Respondo, só pra ver sua expressão de agonia.

- É suco de uva!? - Ela pergunta afirmando.

- Uva!? - Dou uma de louco. Bato com o garfo no prato, como quem vai soltar a frase que vai salvar a Humanidade do Caos e respondo:- Não sei o que quero beber.

Então ela vai lá e preenche a minha comanda e volta. Dez segundos depois.

- Escolheu já?

- Traz um suco de uva.

Trabalho na comida. Ouço a música. Uma bailarina do circo que está instalado ali perto vai lá almoçar. Mastigo bovinamente quando ela entra, por que simplesmente esqueço que estou mastigando. Esqueço a música, a comanda, o suco de uva com gosto de detergente. Tudo. Não consigo disfarçar e as cozinheiras se divertem vendo o meu sufoco. Por fim, acabo esquecendo tudo e fico mastigando pensando na morte da bezerra. No trabalho, nas contas, na Juliana, na Carol, na minha mãe, no soninho depois do almoço... Quando tenho o vislumbre de algum texto, alguém me interrompe.

- E aquela menina que almoça com você?

- Qual?

- Aquela grandona...

- Ah. O que tem ela?

- É a sua namorada né?

- Não.

- Pensei que fosse...

- Por quê?

- Ah, porque vocês sempre vêm juntos...

Com essa, levanto-me, estufado, pego minhas coisas, assino a comanda (fiado rules) e sigo meu caminho sob o sol quente. Os mendigos me cumprimentam e falam da vida. Eles sempre aparecem por lá com potes de sorvete e as mulheres enchem até o teto de comida e eles se vão. Minutos depois eu vou lá e assino a comanda, prometendo pagar depois o valor de um prato de comida que o mendigo levou de graça - e em dobro! - e que eu pago o dobro do que ganho. Nessas horas questiono o sentido da vida e sempre imagino um velho barbudo sentado num trono gigante rindo da minha cara...

10) A empresa mantém uma sala de descompressão. O ar é agradável, tem um papel de parede que remete a um parque idílico, tem cadeiras de encosto largo e extenso e alguns poucos puffs distribuídos, além de uns quiosques com computadores (que nunca funcionam) com acesso à internet. Quando dou sorte, consigo deitar naquela lona que chamam de puff. Mas sempre tem alguém pra estragar a vida. Invariavelmente, um cretino senta ao lado e começa a falar alto com um babaca, acordando a galera que trabalha meio período e fica lá dormindo pra ir pra faculdade menos morta de cansaço, mais tarde. Ou ligam o celular no alto falante, na velha ostentação do mau gosto musical. E eu, invariavelmente, também, penso em como seria agradável ter um Taser nessas horas. Meu estômago revira e dá meu horário. Pego o elevador com a morena que se perfuma com o Tarsila Rouge, pra minha tristeza. Meninas, dica: comprem esse perfume, tá? ENFIM! Vou lá e bato meu ponto e vou pro banheiro escovar o teclado. Tá um cheiro de merda horrível lá! Eu lá escovando e entra o cara, O CARA. Ele entra e diz: "poxa, só tem homem aqui" e dá risada sozinho. Ele forra a pia com vinte folhas de papel, põe um nada de pasta na escova e tira catota do nariz. Começa escovar e vai até o mictório e, enquanto mija, escova os dentes. Volta, faz concha com as mãos e joga a água na boca. Uma descarga é acionada e uma porta se abre. Sai de lá o cara que diz não comer quase nada e que come dois cachorros-quentes sarados em menos de vinte minutos. Um novo cheiro penetra as narinas. Saio de lá e paro no bebedouro. Ela me cumprimenta. Me olha no olho. Usa um decote fenomenal. Mas seu rosto não é nada harmonioso. A outra sai do banheiro e me dá beijo. Sua cara tem oito camadas de pó e dá a impressão de se quebrar caso alguém dê um tapa. Seu cabelo está oleoso e o cheiro não nega a ausência de shampoo. O crente pára ao meu lado e começa a falar de trabalho. Sabe, parecem não ver que uso fones de ouvido NO OUVIDO e que meus ouvidos estão ocupados com os FONES e que eu não tenho tempo/ou interesse nos seus assuntos. Volto pra mesa. O sistema caiu, tem oito na fila do rádio, tem duzentos e-mails, o chefe da chefe fala que nós não fazemos nada, as encalhadas e feias falam da Fazenda e as Deusas nem olham na nossa cara; meu trapézio dói, meu olho arde, o Excel trava, os celulares tocam, as costas doem, penduram abóboras com expressões macabras nas mesas, as louras ficam de quatro, o telefone toca, o superintendente escreve "urjência" e ninguém entende porque eu odeio sexta-feira e porque eu digo quando quero ficar em casa sem falar com ninguém.

E no outro dia, a mesma coisa.

Por isso deixo aqui a mensagem: estudem ou tenham tios e primos com o rabo gordo sentado em cadeiras confortáveis que só os gatos-gordos que chegaram lá tem direito.

Ah, voltando à pergunta... alguém pode responder?

Somos sádicos demais ou é o mundo que nos favorece a piada?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/10/2010
Reeditado em 28/10/2010
Código do texto: T2582854
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