Os ossos do tio Vado

Depois de se arrastar, doente, por longos anos, até quase ao ponto de ficar em estado vegetativo, minha tia-avó, Jorgina, morreu. Ela era obesa, já estava pra lá dos oitenta. Devido aos problemas de saúde que tinha, achamos um milagre ter sobrevivido por tão longo tempo, de modo que, apesar da comoção natural pela perda de um ente querido, havia também, entre parentes e amigos, certa conformidade com a sua morte.

Durante o velório um problema foi discutido: não havia túmulo disponível para o enterro da tia Jorgina; todos os túmulos da família estavam ocupados, um deles, inclusive, pelo corpo do meu tio-avô Osvaldo, marido da tia Jorgina, a quem chamávamos carinhosamente de tio Vado, que estava morto há 17 anos. Desta forma um dos túmulos teria que ser desocupado, teria que ser feita a remoção dos restos mortais de um dos ocupantes; e seria justamente os do tio Vado.

Logo apareceu um funcionário do cemitério pedindo para que alguém da família se dirigisse ao túmulo para acompanhar a retirada do que restava do corpo meu tio. Eu e mais alguns familiares nos dirigimos ao local; chegamos bem no momento em que o coveiro deixava totalmente a descoberta o caixão, ou o que restava dele.

Quando o caixão - já quase todo podre - começou a ser desmanchado, deixou transparecer, ainda em perfeito estado, o forro branco que cobrira o corpo, e sob este a imagem tétrica da ossada. Era estarrecedor aquilo: havia 17 anos que o corpo fora enterrado ali, e ainda exalava um cheiro pútrido, nauseante. A visão era horripilante; os ossos descansavam na forma que fora colocado o corpo. De maneira natural e paciente o coveiro recolhia-os para dentro de um saco plástico preto, do qual já havia um ao lado, que era a ossada da minha bisavó, mãe da tia Jorgina, morta há mais de quarenta anos.

Enquanto observava aquela cena, me veio a mente a imagem que eu tinha do tio Vado, na minha infância; tinha um semblante agradável, sereno, sempre com um enorme bigode, amarelado pelo tabaco – era fumante inveterado. Sempre quando o via era em situação de novidades pra mim; ele morava no centro da cidade e eu morava na zona rural, desta forma até mesmo a sua casa me era um mundo estranho. Lá eu podia ver televisão, ver os edifícios, enfim toda a vida urbana, que era uma cultura totalmente fora do meu mundo. A partir da minha juventude perdi contato com ele, raramente o via, por isso ficaram retidas em mina mente apenas imagens da infância, sempre associadas à coisas novas na minha vida, a descobertas.

Agora tudo o que restava do tio Vado era um monte de ossos, que iam sendo condicionados em um saco plástico os quais, racionalmente analisando, iriam cumprir mais uma etapa da existência material humana, até se desintegrarem totalmente.

É difícil ser puramente racional numa experiência dessas, muito mais quando se trata de pessoa que marcou de maneira bem próxima a nossa vida. A gente reflete, filosofa, se indaga sobre os mistérios da vida. E aprende. Aprende que, na vida, o máximo que se consegue é viver e que, de qualquer forma que se viva, todos seremos, qualquer dia, nada mais que um monte de ossos.

Então vale a pena viver e ter sempre algo de bom a oferecer.

Roberto Santos
Enviado por Roberto Santos em 28/10/2010
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