AZULEJOS
- Me consiga material de limpeza – eu disse.
- Para quê? – questionou ela.
- Vou limpar os azulejos do box do banheiro - respondi já pegando a vassoura.
- Deixe isto para lá...eu farei isto depois! – como se pudesse...pensei eu.
- Eu quero fazer isto – disse com o tom de voz decidido que ela já conhecia.
- Então, está bem – faça!
Havia chegado no dia anterior fugida de uma crise nervosa, tentando esquecer aquilo que só conseguia lembrar. Vim para Sete Lagoas num lapso de desespero, no afã da oportunidade que se agarra como tábua de salvação. Já havia ensaiado visitá-la várias vezes antes. Compromissos, falta de tempo e dinheiro, foram muitas vezes as “desculpas” que arrumei para não vê-la. E neste vai e vem de tentativas, passaram-se cinco anos sem ver uma das pessoas que mais amo no mundo.
Amiga, irmã, amor ...mulher de garra, de fibra e sofrida como eu. Se eu tivesse nascido homem, me casaria com ela certamente; mas ela sempre disse que se eu fosse homem não seria o que sou, então não daria muito certo. Ela deve ter razão. Capricorniana“arretada”, sem papas na língua e que não gosta muito de abraços e “agarramentos” – ela é assim. Totalmente diferente de mim, em tudo. Ela baixinha, eu muito alta. Ela magra, eu gorda. Ela morena, eu loura. Ela, cheia de filhos....eu com apenas uma filha. Ela aparentemente fria, eu aparentemente “quente” demais. Dois seres muito diferentes, vivendo em mundos muito diferentes com uma coisa essencial em comum: o amor. Um amor de 28 anos que nunca faltou entre nós.
Então, já que tinha sua “anuência”, peguei o balde com os produtos que pude ver pela frente, esponjas, palha de aço e tudo mais...e comecei preparando uma água poderosa. Uma mistura de tudo que vi pela frente regada a muito cloro. Peguei a palha de aço e comecei esfregando a primeira fileira de azulejos que iam da altura de meu ombro para baixo. O banheiro era todo azulejado até o teto. Olhei para cima e vi que as cerâmicas lá no alto precisavam de limpeza, mas eu não tinha escada à minha disposição no momento. Avaliei. Uma vassoura com pano não ia resolver o problema. Deixei para lá. Resolvi concentrar-me nos que estavam ao meu alcance.
Havia algum lodo e muita gordura nas cerâmicas. Então comecei um trabalho lento e minucioso. Enquanto esfregava, meu pensamento voava para longe dali. Pensava em como minha amiga estava, de certa forma, só. Não havia quem a ajudasse a fazer os trabalhos domésticos mais pesados. Pensei que, se estivesse por perto, poderia ajudá-la nem que fosse de 15 em 15 dias. Eu conhecia seus gostos e seu jeito. Ela deveria estar “passada” por não poder fazer quase nada em sua própria casa.
Havia algum tempo, meses, que ela sofria com uma doença ainda não totalmente diagnosticada, que inchava-lhe o braço, punho e mão direita, paralisando-lhe os movimentos, causando-lhe dores horríveis que prolongavam-se até o pescoço, descendo por toda a coluna. Chegou a ficar sem poder pentear seu próprio cabelo – que é lindo, negro e comprido. Suspeitavam de artrite reumatóide ou lupus. Ela ainda estava em fase de exames, adaptação de medicamentos; mas estava melhor. Porém nada que lhe permitisse fazer exageros.
E eu ali. Lavando azulejos. Lindos por sinal. Mas sujos. Uma mancha aqui e outra ali. Lavei toda a extensão do box – as três paredes da altura de meu ombro para baixo. A última fileira de azulejos, lá embaixo, não ficou do jeito que eu queria. Eu não conseguia abaixar-me o suficiente para limpá-los como deveria. Então usei a vassoura. Mas não ficou legal. Tudo bem. É meu limite.
Pensei como, muitas vezes, eu havia feito aquilo sem dar o mínimo valor. E senti como é bom poder lavar um banheiro mesmo não o fazendo de forma totalmente “correta”. Também.... o que é correto na vida?
Quando terminei todos os azulejos, olhei para eles e sabia que estavam limpos. Mas não conseguia ver a beleza deles porque eu ainda não os havia enxaguado. Engraçado, pensei: havia gordura e lodo; eu esfreguei cada um com sabão e cloro. A sujeira misturou-se ao produto de limpeza e, apesar de saber que agora está limpo, não conseguirei perceber isto de verdade enquanto não enxaguá-los. Pode parecer loucura, e talvez seja, mas vi naquilo algo de mim. Senti-me um azulejo. Às vezes, o lodo gruda na gente, ficamos “engordurados” por dentro e por fora. Usamos alguns paliativos: compramos roupas novas, arrumamos outro emprego, damos um jeito de misturar aquela sujeira toda com alguma coisa mais “limpa” para que nossa vida pareça mais saudável. E pensamos estar mesmo melhores. Aquilo tudo seca e só agrega uma casca que cada vez mais endurece e pesa em cima de nós.
Peguei então o balde com água limpa. E comecei a jogar nos azulejos. Com minha mão esfregava a água com carinho para que toda aquela mistura soltasse dali e corresse ralo abaixo. Vi cada azulejo reluzir à luz do sol que entrava pela janela com vidros coloridos. Lindos ficaram. Livres estavam. Eram aquilo que tinham que ser. Aquilo para que foram criados.
Pensei na vida que estava vivendo. Na verdade, na “morte” que estava vivenciando nos últimos meses. Um eterno nascer e morrer à cada dia. Como todo mundo aliás, mas talvez de forma mais consciente em função da doença.
Pensei em como tomar a decisão definitiva de banhar meus azulejos. De deixar reluzir minha alma. De ser aquilo que sou e viver para o que fui criada. Eu não queria mais o lodo de minha tristeza, apesar de saber que ela foi necessária e faz parte da vida. Não queria mais a gordura acumulada em meus vários corpos. Eu precisava ser livre. De mim e para mim.
- Quero te agradecer, minha querida...
- Por quê? – Ela disse com carinha de espanto.
- Pela honra de lavar seus azulejos – e dei-lhe um beijo carinhoso.
- Me consiga material de limpeza – eu disse.
- Para quê? – questionou ela.
- Vou limpar os azulejos do box do banheiro - respondi já pegando a vassoura.
- Deixe isto para lá...eu farei isto depois! – como se pudesse...pensei eu.
- Eu quero fazer isto – disse com o tom de voz decidido que ela já conhecia.
- Então, está bem – faça!
Havia chegado no dia anterior fugida de uma crise nervosa, tentando esquecer aquilo que só conseguia lembrar. Vim para Sete Lagoas num lapso de desespero, no afã da oportunidade que se agarra como tábua de salvação. Já havia ensaiado visitá-la várias vezes antes. Compromissos, falta de tempo e dinheiro, foram muitas vezes as “desculpas” que arrumei para não vê-la. E neste vai e vem de tentativas, passaram-se cinco anos sem ver uma das pessoas que mais amo no mundo.
Amiga, irmã, amor ...mulher de garra, de fibra e sofrida como eu. Se eu tivesse nascido homem, me casaria com ela certamente; mas ela sempre disse que se eu fosse homem não seria o que sou, então não daria muito certo. Ela deve ter razão. Capricorniana“arretada”, sem papas na língua e que não gosta muito de abraços e “agarramentos” – ela é assim. Totalmente diferente de mim, em tudo. Ela baixinha, eu muito alta. Ela magra, eu gorda. Ela morena, eu loura. Ela, cheia de filhos....eu com apenas uma filha. Ela aparentemente fria, eu aparentemente “quente” demais. Dois seres muito diferentes, vivendo em mundos muito diferentes com uma coisa essencial em comum: o amor. Um amor de 28 anos que nunca faltou entre nós.
Então, já que tinha sua “anuência”, peguei o balde com os produtos que pude ver pela frente, esponjas, palha de aço e tudo mais...e comecei preparando uma água poderosa. Uma mistura de tudo que vi pela frente regada a muito cloro. Peguei a palha de aço e comecei esfregando a primeira fileira de azulejos que iam da altura de meu ombro para baixo. O banheiro era todo azulejado até o teto. Olhei para cima e vi que as cerâmicas lá no alto precisavam de limpeza, mas eu não tinha escada à minha disposição no momento. Avaliei. Uma vassoura com pano não ia resolver o problema. Deixei para lá. Resolvi concentrar-me nos que estavam ao meu alcance.
Havia algum lodo e muita gordura nas cerâmicas. Então comecei um trabalho lento e minucioso. Enquanto esfregava, meu pensamento voava para longe dali. Pensava em como minha amiga estava, de certa forma, só. Não havia quem a ajudasse a fazer os trabalhos domésticos mais pesados. Pensei que, se estivesse por perto, poderia ajudá-la nem que fosse de 15 em 15 dias. Eu conhecia seus gostos e seu jeito. Ela deveria estar “passada” por não poder fazer quase nada em sua própria casa.
Havia algum tempo, meses, que ela sofria com uma doença ainda não totalmente diagnosticada, que inchava-lhe o braço, punho e mão direita, paralisando-lhe os movimentos, causando-lhe dores horríveis que prolongavam-se até o pescoço, descendo por toda a coluna. Chegou a ficar sem poder pentear seu próprio cabelo – que é lindo, negro e comprido. Suspeitavam de artrite reumatóide ou lupus. Ela ainda estava em fase de exames, adaptação de medicamentos; mas estava melhor. Porém nada que lhe permitisse fazer exageros.
E eu ali. Lavando azulejos. Lindos por sinal. Mas sujos. Uma mancha aqui e outra ali. Lavei toda a extensão do box – as três paredes da altura de meu ombro para baixo. A última fileira de azulejos, lá embaixo, não ficou do jeito que eu queria. Eu não conseguia abaixar-me o suficiente para limpá-los como deveria. Então usei a vassoura. Mas não ficou legal. Tudo bem. É meu limite.
Pensei como, muitas vezes, eu havia feito aquilo sem dar o mínimo valor. E senti como é bom poder lavar um banheiro mesmo não o fazendo de forma totalmente “correta”. Também.... o que é correto na vida?
Quando terminei todos os azulejos, olhei para eles e sabia que estavam limpos. Mas não conseguia ver a beleza deles porque eu ainda não os havia enxaguado. Engraçado, pensei: havia gordura e lodo; eu esfreguei cada um com sabão e cloro. A sujeira misturou-se ao produto de limpeza e, apesar de saber que agora está limpo, não conseguirei perceber isto de verdade enquanto não enxaguá-los. Pode parecer loucura, e talvez seja, mas vi naquilo algo de mim. Senti-me um azulejo. Às vezes, o lodo gruda na gente, ficamos “engordurados” por dentro e por fora. Usamos alguns paliativos: compramos roupas novas, arrumamos outro emprego, damos um jeito de misturar aquela sujeira toda com alguma coisa mais “limpa” para que nossa vida pareça mais saudável. E pensamos estar mesmo melhores. Aquilo tudo seca e só agrega uma casca que cada vez mais endurece e pesa em cima de nós.
Peguei então o balde com água limpa. E comecei a jogar nos azulejos. Com minha mão esfregava a água com carinho para que toda aquela mistura soltasse dali e corresse ralo abaixo. Vi cada azulejo reluzir à luz do sol que entrava pela janela com vidros coloridos. Lindos ficaram. Livres estavam. Eram aquilo que tinham que ser. Aquilo para que foram criados.
Pensei na vida que estava vivendo. Na verdade, na “morte” que estava vivenciando nos últimos meses. Um eterno nascer e morrer à cada dia. Como todo mundo aliás, mas talvez de forma mais consciente em função da doença.
Pensei em como tomar a decisão definitiva de banhar meus azulejos. De deixar reluzir minha alma. De ser aquilo que sou e viver para o que fui criada. Eu não queria mais o lodo de minha tristeza, apesar de saber que ela foi necessária e faz parte da vida. Não queria mais a gordura acumulada em meus vários corpos. Eu precisava ser livre. De mim e para mim.
- Quero te agradecer, minha querida...
- Por quê? – Ela disse com carinha de espanto.
- Pela honra de lavar seus azulejos – e dei-lhe um beijo carinhoso.