ENVELHECER
Passava apressado pelo passeio do jardim da Praça Senador Themístocles em direção a Cofel para umas compras de última hora antes que as portas se fechassem às 6 horas. Lá para os lados da prefeitura, sobre a cabeça da águia, alguns clarões vermelhos ainda podiam ser vistos anunciando a chegada da noite. Na minha pressa nem notei aquele homem de cabelos compridos, totalmente brancos, criando bijuterias. Seus olhos me viram e a sua voz perguntou-me com mansidão:
- Aonde vai você, Hermes Peixoto, com tanta pressa?
Voltei-me e encarando o seu semblante imaginei que também o conhecia. Tentei buscar lembranças e num lampejo lembrei-me dele. Era um velho colega do curso Científico do Colégio Alberto Torres, que vindo de Pernambuco, aqui não ficou, indo estudar o curso Clássico em algum colégio de Salvador, porque ele sonhava ser um advogado.
- Mário Hermes, é você?!
- Sim meu caro, sou eu. Certamente você está admirado com o meu novo modo de viver já que sempre soube do meu sucesso como advogado. Pois é. Larguei tudo para ser feliz.
Sentei-me no banco da praça, ao seu lado e até esqueci as compras e a pressa. Uma paz infinita invadiu-me ante aquele homem tão tranquilo e então ele contou-me uma estória emocionante:
Um dia, disse-me ele, olhei-me no meu velho espelho sem brilho e vi a última ruga da manhã acontecida depois daquela noite mal dormida. Ela era a mais nova das minhas rugas, recém nascida do meu envelhecer. Minha face ficou até mais feliz com aquela ruguinha menina. As outras, cúmplices do espelho, já não apareciam tanto, pois fui me acostumando com elas. Olhando melhor a minha cara, verifiquei que aquela débil reentrância deixou meu queixo mais saliente, a boca mais franzida, os cantos dos olhos mais sulcados, a testa como um pergaminho; e era apenas mais uma ruga. Fiquei deprimido o resto do dia.
A noite chegou logo às seis da tarde, pois meus olhos teimavam em buscar sonhos. Eu não queria dormir apesar do cansaço de um dia intenso de trabalho, estudando processos, revisando petições, solicitando liminares enfrentando o juiz e o promotor que naquele dia estavam mal humorados. Apesar de tudo pensava no meu corpo envelhecendo e tinha medo que uma nova ruga surgisse na manhã seguinte. Aquilo ia tomando conta de mim. Já não trabalhava direito. A cada noite eu descobria que o meu travesseiro tornara-se o carpinteiro das minhas transformações faciais. Meu colchão, tão querido e desejado para o amor, agora era o responsável pelas marcas matinais em meus peitos flácidos, em minhas coxas sem muitas carnes. Meus pés e mãos ossudas e cheias de veias afundavam-se no macio do passado. O meu colchão sempre come um pouco das minhas carnes. Como rejuvenescer a cada nova idade?
No dia seguinte comprei cremes hidratantes, loções anti-rugas, tinturas que enegreceram meus cabelos grisalhos ao primeiro raio de sol. Só consegui ficar mais novo na aparência, mas internamente eu era um ancião na insatisfação da minha juventude fabricada. A surpresa de todos ante a minha transformação deixou-me constrangido. Em cada nova noite a insônia continuava marcando os meus pensamentos cada vez mais díspares. Tomei uma pílula cor de rosa. Dormi. No dia seguinte acordei e rezei. Lá fora a vida era o sol da manhã. No meu despertar, a vida era um outono sem fim.
Ai, meu amigo, resolvi mudar. Joguei fora os meus sobressaltos, deixei o meu cabelo grisalho crescer e ir ficando branco neste “rabo de cavalo” como você pode ver. Desisti do meu carro, calcei sandália de couro, aposentei a gravata e passei a usar essas batas rendadas e brancas como a paz. Encerrei a conta bancária, e quebrei meus óculos. Não mais carrego pastas nem guarda-chuvas e não atendo telefone; pois nem tenho. Bebo, fumo, transgrido todas as coisas normais. Não chego a ser um anarquista, mas acho que sou um desobediente civil. Aprendi a fazer jóias de mentira que transformaram a minha vida em verdades. Sou feliz.
Agora como não tenho espelho, converso com as minhas rugas. Elas sorriem para mim e eu sorrio para elas; perdemos o medo um do outro. Saio brincando de esconde-esconde e elas encontram-me, sempre. Já nos prometemos uma viagem. Neste dia sentaremos na ponta da estrela mais longínqua e celebraremos a vida.
A noite nos envolveu, uma tímida lua minguante enfeitava o céu. Ai ele perguntou-me:
- Então, aonde é que você ia com tanta pressa? Por mais importante que seja essa coisa, meu amigo, faça com calma. Temos que viver cada momento como se fosse o último, porém com bastante calma e serenidade.
Eu estava atônito e nem me lembrava mais o que iria comprar. Quedei-me ao seu lado e ficamos em silêncio por algum tempo. Contei-lhe um pouco da minha vida àquela altura tão normal. Despedimos com um longo e afetuoso abraço, depois que ele recusou ir a minha casa, conhecer a minha família.
Não, HP, assim ele passou a me chamar, na sua casa tem espelhos.