DIAS DE CÃO, VIDA DE CACHORRO

DIAS DE CÃO, VIDA DE CACHORRO

Todo o mundo pode ter um dia de cão uma vez ou outra, mas quando esses dias começam a repetir invariavelmente um após o outro, você tem uma vida de cachorro.

Eu não estava no meu dinheiro. Dormira tarde como de costume mas as terças-feiras é o único dia da semana em que ocorre a droga da coleta seletiva do lixo.

Nesta cidade é assim: ou você é um criminoso que ajuda a destruir o planeta com o seu lixo ou convive com quilos de porcaria para reciclar durante a semana inteira e acorda de madrugada na Terça-feira antes do recolhimento.

No meio do banho terminou o gás e nenhum daqueles espertos condôminos que conhece o segredo da troca da chave havia acordado ainda, tentei acostumar-me com a transição abrupta entre um banho quente e um gelado até que terminou a água.

Tá, bem, tinha um aviso na porta avisando que iriam limpar a caixa d’água ou coisa assim, mas ficou tanto tempo pendurado que ninguém mais lembra de ler o que está escrito.

Meu humor está péssimo e toca o telefone, várias vezes. Se ninguém morreu, antes das nove não é hora de telefonar, se morreu, é muito cedo para o enterro e não acredito em telefonemas do além, seja como for, ninguém devia ligar nesse horário.

Distraído, lá pelo terceiro ou quarto toque atendo o telefone. É o Falcatrua. Claro que este não é o nome dele, nem ele atenderia este apelido, o nome dele é Edison, mas faz questão que os amigos chamem ele de Ed. Falcatrua é o apelido do Edison nos meus mais obscuros pensamentos.

Xinguei todos os responsáveis pela existência do Ed, pelo menos até a quinta geração, enquanto procurava desesperado um cigarro esquecido nos bolsos de todos os casacos e desliguei.

Meia hora depois, ele ligou de novo:

- Tá, mais calminho?

Eu estava. Estava mais ou menos na metade da terceira caneca de café preto, forte e sem açúcar. Uma receita especial para levantar defunto ou espantar mau olhado, imprestável apenas para exorcismo daqueles que telefonam de madrugada.

- Olha, precisamos conversar, te devo uma compensação ...

Dou esse apelido para ele porque o Falcatrua trabalha em tempo integral imaginando estratégias para enriquecer que o Bill Gates é burro demais para pensar ou ocupado demais para colocar em prática, aquela idéia básica, fantástica, que de um minuto ao outro leva o sujeito da miséria mais negra à abastança.

Falcatrua não seria bem o caso, os negócios do Ed não estão no limite da ilicitude, não são daqueles onde interessa a vírgula que esqueceram na lei, estão no limiar da genialidade e da imbecilidade mais completa, normalmente são a forma mais trabalhosa de não se fazer nada, apenas ter idéias e encontrar no exíguo grupo dos parentes e amigos quem fique convencido.

O grande segredo do Ed é jamais causar prejuízo à ninguém, ele sempre compensará em outra vez, quando houver uma idéia ainda mais genial, mais simples, mais enriquecedora.

É como o jogador em um cassino que jamais levanta da mesa quando está ganhando e volta sempre, para recuperar as perdas, afundando cada vez mais no prejuízo, de propósito.

Nem quero falar com o Ed, mas ele insiste:

- Tenho um presentinho para ti, um amigo meu é comandante da Varig ...

O Ed conhece todo o mundo e é amigo de todo o mundo. É bem apessoado, veste-se bem, fala macio e muito. Quando tem dinheiro gasta sem contar, quando não tem, são poucos os que se dispõem a emprestar, ele jamais devolve.

Fico curioso, faz tempo que o Ed não me coloca em nenhuma furada, nem me pede dinheiro. Resolvo arriscar. Marco para uma hora depois, no meu escritório onde a possibilidade de ter que pagar a conta é mais remota.

Chego mais cedo, empurro para o lado uma montanha de papéis na qual deveria estar trabalhando, e fico fazendo hora. Pouco depois chega o Ed. Todo sorrisos.

Olhando para ele me sinto como o negativo de uma fotografia colorida. O brilho da gravata Hermés dele machuca os olhos. O terno não tem nenhuma poeira, nenhum vinco.

Esperto, tiro do bolso um gravador Panasonic que comprei de um camelô em Capão da Canoa, com um sorriso malicioso, coloco em cima da mesa e aperto o botão de gravar.

- Olha, Ed, desta vez não quero surpresas, vou gravar!

O sorriso dele ganha do meu. Não que precisasse muito, o sorriso dele parece saído de propaganda de creme dental.

- Parece até que estavas adivinhando ...

Ele tira do bolso uma coisinha de uns quinze centímetros de comprimento e a metade disso de largura, prateada e brilhante.

- É um gravador digital, ninguém fica sabendo que estás gravando, tem um alcance fantástico e depois podes passar tudo para computador sem precisar digitar. Uma maravilha. Te trouxe de presente, tenho um amigo comandante da Varig que me traz essas coisinhas, querendo alguma coisa, só avisar.

Nesta altura dos acontecimentos você deve estar pensando que comecei no lucro, mas não esqueça daquela estória dos cassinos, não faz diferença como começa...

- Já estás gravando? Tá, depois guarda em lugar seguro porque é segredo, vamos ficar ricos, eu te devo uma compensação porque da outra vez te deixei mal ...

- Qual vez, a das motos Ninja?

O Ed resolveu que dinheiro mesmo ganham os importadores, importou trinta (tem que pensar grande) motocicletas dos Estados Unidos, negócio garantido para faturar milhares de dólares só entre os amigos dele que tem um clube de motocicletas.

É, deu um probleminha, as motocicletas já haviam sido importadas nos Estados Unidos, não dava para liberar uma segunda importação porque os veículos tinham que vir direto do país de origem, no caso, do Japão, as motos foram confiscadas.

- Não, é ...

- A das BMW?

O Ed continuava no negócio da importação mandou vir cinco BMW, cada uma mais linda que a outra mas esqueceu de agilizar a documentação antes que os carros chegassem no país, três meses depois a despesa com a armazenagem no porto de Rio Grande era maior que o valor dos carros, adeus lucro e dinheiro.

- Não, a ...

- Já sei, a representação nos USA?

O Ed passou uns tempos morando nos Estados Unidos e conseguiu uma representação fantástica, eram diversos produtos imprescindíveis para os lares modernos e o grande segredo era criar uma grande rede de representantes que ele iria administrar. Depois de levar uma meia dúzia de casais brasileiros para conhecer as virtudes do negócio, descobriu que levaria uma década apenas para recuperar o investimento inicial que já havia gasto.

- Tá, já vi que estás rancoroso. Vamos fazer assim, deixa primeiro o negócio sedimentar, depois do meu primeiro milhão eu dou um jeito de te encaixar, vais recuperar com sobras ...

Agora sim, atingi o ideal de qualquer jogador, vou sair da mesa enquanto ainda estou ganhando. Abro um sorriso para o Ed e ofereço um cafezinho, uma água mineral, um chá gelado ...

- Nada. Neste negócio não se pode parar. Tenho que correr antes que alguém tenha a mesma idéia. Só me faz um favor, me empresta um dinheiro para a gasolina ...

Este é o Ed. Depois de falar em milhões (de dólares) acaba confessando que não tem dinheiro nem para a gasolina. Mas no Ed eu acredito. A primeira (e única) vez que eu (e acho que todo o mundo) viu alguém colocando gasolina de saquinho em uma BMW conversível, foi o Ed (e o dinheiro era meu).

- Tá quanto precisas?

- Uns duzentos, chega.

- Duzentos ??? Para a gasolina?

- Sabes quanto consome uma Ferrari?

Sorte do Ed que eu tinha o dinheiro, claro que não era para emprestar e era pouco para o que eu precisava, mas ele sempre foi um cara muito sortudo. Quem correria o risco de ver um amigo empurrando uma Ferrari sem gasolina pela rua?

Fosse algum outro eu desconfiaria, mas o Ed? Desci correndo atrás dele, mas só de curioso, bem a tempo de ver saindo do estacionamento em frente uma Ferrari vermelha, quase tão reluzente quanto o sorriso do Ed, conduzindo.

De tarde eu passei no Shopping e encontrei um gravador digital igualzinho aquele que o Ed me deu de presente. R$ 149,00 vem com o manual e um software para o computador.

Ainda não foi desta vez, mas depois ele compensa ...

João Alfredo Mello
Enviado por João Alfredo Mello em 18/06/2005
Código do texto: T25805