QUAL O REAL VALOR DO "RECEBER"?

Não faz muito tempo, foi num final de tarde de poucos dias atrás, eu passava a pé por uma calçada próxima de casa, bem em frente a uma padaria pertencente a uma rede de panificadoras da cidade,famosa por fabricar quiches, bolos e tortas da melhor qualidade; para onde muitos vêm de bairros mais distantes para saboreá-los, e aonde pude ver uma cena incrível que motivou minha presente crônica.

Confesso que não tenho muito o hábito de frequentar padarias, embora ache o hábito culturalmente muito interessante.

Isto porque aqui pela cidade é mais prático comprar os tais produtos nas padarias dos supermercados, que têm preços mais razoáveis, a despeito de que também esteja eu maneirando a boca aos doces que tanto amo. Não sei, ando percebendo que "o tempo" é muito calórico, não? Muito mais que qualquer doce de qualquer boa padaria!

Porém, uma das manias não menos calóricas da cidade de Sampa, pelo menos no frio do inverno, é o aconchegante calor das sopas das padarias paulistanas que são degustadas ao anoitecer.Muito bom!

E como não sou a Mafalda, fui lá xeretar se ainda estavam produzindo alguma sopinha de primavera. "Quem sabe já existe sopa de flores?"-pensei comigo. Olhei para os doces e fugi deles...e dos seus preços.

Quando de lá saí, triste por ainda não haver a tal da sopa floral, vi três "crianças" de comunidade carente aos tapas e aos berros, disputando algo que, de longe, não consegui enxergar o que era.

Levei um susto, mas não o suficiente para fingir que nada ocorria.

Então, devargarzinho me aproximei para entender a briga, tentei apartá-los, e então vi que haviam ganho do Português da padaria umas vinte unidades de variados doces, tortas, bolos e quiches, todos embalados e fresquinhos, que os meninos desengonçadamente tentavam dividir para carregá-los para casa.

Com poucas palavras consegui acalmar os ânimos e tentei ajudá-los na logística do transporte dos doces, já que estavam a pé.

Porém um fato me gritou aos olhos, nas falas de desdém dos garôtos: "ô meu, joga esse fora que já espatifou todo!", "ah este aqui também quebrou um pouco, não dá mais!" dizia um e os outros concordavam, já com o pastelão dos bolos de nozes num saco prestes a ir boa parte para o lixo.

Claro que me surgiu um mal estar imediato frente à minha percepção do desprezo que os garôtos davam ao tanto que haviam ganho e com o incrível desperdício que provocavam daquilo que para mim (e para a cidade toda!) eram tidos como produtos de "luxo".

Seria o luxo no lixo da comunidade carente, e ali nascia o início do meu projeto de crônica, paradoxalmente à violência que esboçaram quando perceberam que a conta dos doces não se dividia exatamente por três, e um deles sairía com um doce a menos para a casa.

"Me dá esse que esse era meu!", insistia um deles arrebentando um quiche de quatro queijos nas mãos do amigo...

Até senti pena da boa vontade do português, dono da padaria.

Tentei comtemporizar meu raciocínio da matemática do desperdício, lhes dizendo que brigavam pelo que queriam jogar no lixo.

Milagrosamente concordaram comigo e se aquietaram.

"É mesmo, tia!"

Olhei para a mercadoria doada, fiz as contas rapidamente e percebi que ali havia quase duzentos reais.

Perguntei-lhes se iriam comer tudo aquilo ou se iriam vendê-los.

Acharam a ideia legal."Tia, então podemos levar uns e vender os outros!"

Como os produtos tinham a etiqueta dos preços, sugeri que os vendessem por um preço abaixo da etiqueta, pois venderiam mais rapidamente.

"Poderiam fazer um dinheirinho e ajudar suas mães", lhes sugeri.

Sairam dali feliz da vida, calminhos e agradecidos pelo aprendizado empreendedor. Seriam micro-empresários da melhor gastronomia da cidade!

Acho que não preciso explanar a moral da história desta crônica.

E eu saí de lá a pensar com os meu botões, ávidos por um docinho, qual seria o real valor intrínseco do apenas..."receber".

Uma fábula social à luz das ruas de São Paulo, bem cabível nessa nossa época eleitoral, e que tão bem poderia ilustar o aprendizado político de quem se aventura na missão de liderar um país...pensando apenas em pequenas doações para a resolução do nosso gravíssimo social.

Mas para vocês que me lêem eu vou confessar um segredo: que eu tive vontade de ser a primeira cliente compradora dos doces dos meninos...ah, meus quilinhos a mais que o digam! Como tive! E foram eles que me seguraram.