Coma

Coma como? Coma comer ou coma adoecer? A diferença é marcante, meu caro. Sei que é muito cômodo a você que escreve, falar sobre coisas, saindo de uma e outra, assim, impune. Mas, se você diz "coma", deixe logo de início tudo muito bem claro, pois a diferença entre as duas comas é abissal. Como é abissal também essa distância que separa você daquela mãe, morando debaixo da ponte, bem em frente à varanda do seu apartamento. De repente, você decide escrever sobre ela e o filho que carrega no colo, inspirado num "coma" que teria ouvido ela dizer a ele, depois de, a duras penas, ter arrumado algo para ele comer. A duras penas, pois você, que observa a pobreza da coitada, deixou de enxergar a sua, burguesa e acomodada, só no escrever. Dizem que o poder público é que deve fazer algo, não "escritores" como você, acomodados em varandas de apartamentos. Esquece que ocupantes de varandas também fazem parte do público, seu babaca? O que lhe falta? Poder? Não seria vontade, imbecil? Vontade de, minimamente, exercer parte da sua cidadania, reafirmando a do próximo? O que você sabe sobre o próximo? Escrever sobre ele, apenas? Escrever sem interferir, como se fosse um maldito repórter, que, de fato, você é. É isso que você é, um maldito repórter. Apenas reporta, conta, escreve, vaidoso, na sua vida de "inteligentinho". Vá à merda, meu caro.Que a sua sensibilidade, ao escrever sobre a pobreza dos dois, embote, atrofie, soe piegas ou ridícula, àqueles que, como aquela senhora, que deu a comida que agora o filho da mulher come, agem. Agem, meu caro, não escrevem, mas agem. Talvez até escrevam, mas agem, não apenas contemplam. Seu contemplativo, escritor bossal, que se posta comodamente na varanda, com seu computador, escrevendo sobre a pobreza alheia na pretensão de que, um dia, alguém lhe leia. Tomara ninguém o faça e você caia no ostracismo. Talvez assim, de tanto te desconsiderarem e não te lerem, você resolva ler mais aqueles que escrevem depois da ação, os grandes, os mágicos, os bons. Quer escrever, imbecil? Então leia-se primeiro.

PS: Não estou agredindo a ninguém, senão ao meu maldito lado burguês, quando se manifesta, hipócrita e contemplativo, sobre coisas que soam hipócritas, quando apenas contempladas. Sorte a minha ter um lado, que pode encher o outro de porrada, pois o lado que leva pancada e não escreve, é necessário ao outro, que escreve, nessa dialética de autocrítica que trago dentro de mim e que, por hora, resolve levar mais amparo à mulher e seu filho, antes de escrever sobre eles.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 26/10/2010
Reeditado em 27/10/2010
Código do texto: T2579557