ARGOLINO ABDORAL DE AMORIM

Tudo começou no final do século dezenove. O país fervilhava com a disputa de governo entre jacobinos e a chamada “República dos Fazendeiros”. Em 1894, Prudente de Morais, representante da classe latifundiária, foi o primeiro presidente eleito pelo voto, porém não havia estabilidade no país. Nos pampas já havia derramamento de sangue pela Revolução Federalista do Rio Grande do Sul. Eclodia no interior da Bahia a revolta de Canudos. Em novembro de 1896, Prudente de Morais adoece e o vice, Manoel Vitorino Pereira, assume a presidência. Um mês depois, nascia “Seu Argolino”, precisamente em dezenove de dezembro. Nasceu de sete meses, debaixo de uma árvore à beira de uma estrada. Devia ser um dia de sol escaldante, mas aposto que, naquela manhã, o vento balançava as árvores (teria que ser uma agradável manhã). Meus avós seguiam de um pequeno município, que não sei precisar o nome, só sei que não era o arraial de Antônio Conselheiro, rumo à Feira de Santana na Bahia, para que ele pudesse nascer em melhores condições. Iam com certa antecedência a fim de evitar imprevistos. Montados em seus cavalos, com alforjes cheios de mantimentos, eis que em pleno meio do caminho, mãe Sinhara (minha avó, que morreu quando eu tinha quatro anos de idade, e juro que me lembro perfeitamente dela) começou a sentir as dores do parto. Mais que depressa apearam, prepararam um leito embaixo de uma árvore e ali ele nasceu. Nem precisou de “incubadora”. Nada mais sei da sua vida de menino

Não sei se pela aventura do nascimento, ou circunstâncias outras, a verdade é que ele foi um viajante. Serviu o exército no Rio de Janeiro. Conheceu vinte Estados do Brasil. Acabou por encontrar sua cara metade na pequena cidade de Simplício Mendes, no Piauí. Segundo gostava de contar, enquanto foi noivo de Amélia (dona Neném), só conseguia tocar nas pontas dos dedos da mão dela, e olhe lá! Casaram e foram muito felizes. Viajaram pelo Maranhão em lombo de cavalos. Um dos oito filhos nasceu naquele Estado. Tentou fixar residência em Teresina por várias vezes, só veio a conseguir em definitivo após a aposentadoria. Morou em várias casas em Simplício Mendes, nunca foi proprietário de nenhuma, menos pelas finanças, talvez mais pelo espírito de aventura subjacente. Exerceu várias profissões, teve loja de tecidos, foi fiscal da prefeitura, na qual se aposentou concomitante, foi flandeiro e delegado de polícia. E sabia tocar clarinete.

Não tenho dificuldades em relembrar momentos especiais com meu pai. Ele deitado na “preguiçosa” de lona, a “chaise longue” do interior, ao anoitecer, na calçada da última casa em que moramos, hoje um mercadinho, a conversar com padrinho Silvino Amorim, seu primo. Ali, tomavam um cafezinho bem quente, discutiam o destino do país e, especialmente, de Simplício Mendes.

Como flandeiro, ele era um artesão. Possuía oficina instalada em uma sala da própria casa onde morávamos. Fazia objetos que, embora de utilidade doméstica, denunciavam a veia artística de um escultor ou, sem modéstia, de um desenhista industrial. Podia-se dizer, foi um precursor na fabricação do forno em latão, substituto do forno de tijolo.

Um dos momentos mais dramáticos do meu tempo de menina era quando meu pai ia fiscalizar os boiadeiros que tentavam passar por Simplício Mendes, sonegando impostos, e ele, como fiscal da prefeitura e delegado de polícia, ia atrás deles. Aquele homem alto e magro, com sua carabina, fazia-me lembrar “Dom Quixote de la Mancha” (li “Dom Quixote” em versão infantil, presente do meu irmão Nelito, que estudava e trabalhava em Teresina). Hoje, penso que ele se assemelhava mais à imagem de Tenório Cavalcante, naturalmente sem as quarenta e nove balas no corpo deste e as retribuições das mesmas aos desafetos. Meu pai, em seu cavalo, sem acompanhante, apenas com a coragem de um grande homem, sempre retornava são e salvo (graças às orações de minha mãe), com o dinheiro recolhido para a prefeitura.

E tinha mais desse maravilhoso homem, ele gostava de caçar veados e tatus (naquela época o tatu não estava em extinção), nos finais de semana. A carne da caça era saborosa e nós fazíamos a festa.

Recordo-me que, nas noites de chuva, com seus relâmpagos e trovões, costumávamos, eu e minha irmã caçula, corrermos para a cama do casal, com medo dos raios de fogo que riscavam os céus, e nos aconchegávamos entre papai e mamãe, sentindo-nos protegidas.

Já em Teresina, nos anos cinqüenta, recostado na sua “preguiçosa”, ao entardecer, ficava a ouvir-me ler as crônicas de David Nasser, na revista “O Cruzeiro”. A preferência pela minha leitura era porque achava que eu lia com entonação. Meu pai escrevia bem e tinha bonita letra.

Anos após sua morte, sonhei que ele estava junto a mim, na igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, em seguida, afastava-se em direção ao altar e se juntava a um coral, composto por crianças.

Pouco tempo atrás, nas minhas andanças por Simplício Mendes, numa noite mágica, assistia a um espetáculo musical ao ar livre, atenta ao virtuose do violão, Erisvaldo Borges, quando minha atenção se desvia para um pouco além e vejo na minha imaginação, na esquina onde, anos passados, era a casa de padrinho Silvino, simplesmente meu pai a me olhar.

São lembranças como essas e tantas outras que tomariam muito espaço aqui, se fossem relembradas, que digo com orgulho: vale a pena ser filha do “Seu Argolino”.

Rita de Cássia Amorim Andrade
Enviado por Rita de Cássia Amorim Andrade em 26/10/2010
Código do texto: T2579390
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